10 de junho de 2010

Religião? O verdadeiro ópio das massas é o futebol


A Copa do Mundo começou hoje, exatamente no dia em que o senado aprovou a Emenda Ibsen e o STF se reuniu para decidir se o Ficha Limpa valerá ou não no pleito de outubro. Naturalmente, nenhum desses temas foi tratado com a devida vênia pelos nossos jornalistas, que estão ocupados com a cobertura do mundial de futebol. Toda essa comoção já era esperada, pois é a primeira vez que o continente africano sedia um evento desse porte. Ainda assim, fico estarrecido quando vejo o povo brasileiro saindo de casa para torcer pela seleção ao mesmo tempo em que alguns dos assuntos mais importantes do nosso país são decididos à surdina.

Na Roma antiga a política do Pão e Circo arrebatava almas e quietava as mentes sedentas de justiça. Em nosso país a Copa do Mundo exerce um efeito semelhante sobre a população, com o agravante de que aqui não há ninguém sedento de justiça. Troque Júlio por Luiz, César por Fernando, imperadores por usurpadores e o que temos é o Brasil. É a comprovação cabal de que a história realmente se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

De quatro em quatro anos o brasileiro é acometido de uma súbita febre ufanista que o leva a crer que o seu país é o melhor e o mais merecedor de todo o mundo. Na década de 70, o presidente Médici se aproveitou desse surto e usou a Copa para fins estritamente propagandísticos. Quem não se lembra do hino "Pra Frente Brasil" (usado até os dias de hoje)? Noventa milhões em ação, pra frente brasil, salve a seleção...

Essa é, sem dúvida, uma época inglória em que as obras de literatos ufanistas como José de Alencar e Gonçalves Dias encontram amplo apoio junto aos meios de comunicação. Tem sempre alguém disposto a se jactar por ser brasileiro. Tem sempre alguém disposto a ser o Policarpo Quaresma do século XXI. Nesses dias, queixar-se das mazélas que afligem o nosso país é um pecado de lesa-humanidade, pois não há um único cidadão brasileiro [sic] que não esteja disposto a por os dissabores de lado para torcer pela seleção.

Mas o que fazer quando essa febre não lhe contagia? Eu, por exemplo, tenho horror de tudo aquilo que para os estrangeiros é sinônimo de charme e exotismo. Costumo fugir do carnaval e do futebol, do samba e da miséria, da indigência mental e da corrupção. De fato, adoraria tirar umas férias desse país subdesenvolvido para ir viver em um território onde o homem sofre com os problemas da condição humana e não com os da condição animal.

Reparem na forma como o povo se agarra a símbolos como a camisa canarinho, enquanto morre de fome. Tenho calafrios todas as vezes que aqueles pobres diabos sorriem felizes e desdentados quando a nossa seleção vence as outras. Você acha que a realidade não é assim tão tétrica quanto eu pinto? Então olhe ao seu redor e veja o luxo, o requinte, a ostentação das mansões que mais parecem ilhas de sonhos em meio a um mar de pesadelos. O brasil talvez seja o único lugar do mundo onde existem cronistas sociais que acendem charutos com notas de cem dólares enquanto homens maltrapilhos catam restos podres para comer.

Por essas e outras eu abomino o Brasil do futebol e tudo aquilo que ele representa. Não faço parte do contingente de míseraveis que solta fogos ao término de cada jogo, enquanto os filhos brincam com os calcanhares sujos de lama. Não faço parte do contingente de miseráveis que assiste impassível ao fechamento de hospitais, delegacias, bancos, supermercados, farmácias, e escolas. Definitivamente eu não preciso de fugas, pois me considero capaz de enfrentar de peito aberto as idiossíncrasias do meu país.

Mas então, você não gosta de futebol? Gosto do esporte, mas repudio veementemente aquilo que ele representa. Provavelmente tenho o mesmo apreço pela arte do gramado que o nosso saldoso Nelson Rodrigues. Provavelmente a única diferença entre nós dois é que por temperamento e experiência, tenho mais simpatia pelas idéias "magras e severas" do que pela exuberância carnavalesca. Para mim, o excesso de entusiasmo, o frenesi juvenil, o nervosismo encantado... Tudo isso costuma ser um atalho muito eficiente para o desastre.

Estou convencido de que as idéias "magras e severas" compõem com mais propriedade a coreografia ascética do conservadorismo, ao passo que os fascismos são sempre muito "emocionados". Talvez seja por isso que vejo com maus olhos as inúmeras campanhas dedicadas a Copa do Mundo que apelam para o sentimentalismo dos brasileiros. Esse exceço de emoção, de empatia, acaba criando uma espécie de simbíose entre o povo brasileiro e a sua seleção. Para onde quer que você vá, a "praga" segue colada as suas costas.

Há alguns anos um amigo viajante me confidenciou, com um profundo ar de pesar, que não importa para onde se vá, o estigma de ter nascido no país do futebol irá com você. No aeroporto de Tripoli, um guarda de fronteira, mal viu o seu passaporte, abriu em um sorriso afável e disse: "Pelê". Em Berlim, o funcionário da alfandega olhou um minuto para sua foto e mais um minuto para o seu rosto (e aí você vê quanto custa a passar um minuto), em seguida abriu um largo sorriso e disse: "Pelê". Em Eilat, cidade litorânea de Israel, ele sentiu nos olhos de um funcionário embuçado um brilho alegre ao ver que o seu passaporte era do país de Pelé.

E assim, todos os esforços do Brasil para constituir-se como nação e ter uma identidade cultural própria, se desmancham no ar. Em apenas alguns segundos, toda a história nacional, todas as instituições brasileiras, são resumidas em uma singela palavra de quatro letras.

Há esta altura, alguns de vocês devem estar convencidos de que eu abomino o futebol e que aquela história de nutrir o mesmo apreço que Nelson Rodrigues pelo esporte não passava de uma aleivosia. Ora, não é bem assim! Considero o futebol um esporte muito plástico, bonito, inteligente e excitante. O que abomino, repito, é o fanatismo. Mais que o fanatismo, abomino esta mania tupiniquim de associar o futebol à nação.

Já não se pode ir a um restaurante sem ter de suportar os patrioteiros berrando a cada gol. O verde e amarelo torna-se emético. Pessoas aparentemente inteligentes viram de repente brutos fanatizados. Sequer é preciso que o Brasil esteja em campo. Qualquer jogo é aquecimento para o dia em que a pátria entrar de chuteiras no gramado. E ai de você se pedir a um garçom para baixar o volume da TV. Passará por inimigo da nação e correrá o risco de ser posto para fora do restaurante a ponta-pés.

Dentro de poucos dias, essa símbiose atingirá o seu apice e cada vitória do Brasil passará a ser vista como uma vitória do governo no poder, seja lá qual governo for. Foi assim nos tempos de Médici e continua a ser assim nos tempos de Lula. É como se o presidente e seus ministros tivessem disputado, ombro a ombro, cada centimetro daquele gramado. É como se o presidente e os seus ministros tivessem vestido, eles próprios, a camisa amarela da qual tanto nos orgulhamos.

Cientes do vício deste povinho infame, os governantes se apressam em associar a sua imagem à seleção. A Copa passa a ser um fator eleitoral. Nestes dias, ninguém mais lembrará que o PT montou a mais vasta quadrilha de toda a história do país, que o presidente acha algo perfeitamente normal o caixa dois e não vê nada de mal no tráfico de influência e na fabricação de dossiês. Ninguém mais lembrará da derrota vergonhosa que os norte americanos infligiram ao Itamaraty no mais recente episódio envolvendo o programa nuclear iraniano e tão pouco daram atenção as noticias falando sobre o Ficha Limpa e a Emenda Ibsen. Tudo será apagado da memória nacional como num passe de mágica.

Depois da copa, começa-se de zero. Pior é o espetáculo da imprensa. Jornalistas, que por questão de ofício deveriam ser profissionais lúcidos, transformam-se em palhaços abobalhados que só repetem lugares comuns e frases vazias. Passamos a viver em pleno império das nulidades. Os jornais passam a dedicar cadernos inteiros à crônica do nada. Rádio e televisão passarão a ministrar, dia-após-dia, doses colossais de anestésicos. Na falta de assunto, criam-se tragédias em torno às bolhas no pé de uma vedete qualquer à lesão no menisco de outro analfabeto.

Por isso, sejamos mais coerentes com as reais necessidades do nosso país e permaneçamos atentos as manobras desavergonhadas deste nosso DESgoverno. Você quer torcer pelo Brasil? Torça, mas quando estiver diante da sua televisão gritando "pra frente, Brasil", preste atenção ao eco: "Eleições 2010".

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3 comentários:

  1. "A Copa do Mundo começou hoje, exatamente no dia em que o senado aprovou a Emenda Ibsen e o STF se reuniu para decidir se o Ficha Limpa valerá ou não no pleito de outubro. Naturalmente, nenhum desses temas foi tratado com a devida vênia pelos nossos jornalistas, que estão ocupados com a cobertura do mundial de futebol. Toda essa comoção já era esperada, pois é a primeira vez que o continente africano sedia um evento desse porte. Mas ainda assim, fico estarrecido quando vejo o povo brasileiro saindo de casa para torcer pela seleção ao mesmo tempo em que alguns dos assuntos mais importantes do nosso país são decididos à surdina."

    Nesse parágrafo vc já disse tudo. Lamentável que essa corja use artifícios tão banais para roubar o povo. E mais lamentável ainda é que o povo cai nessa. Tenho comentado em vários meios na internet sobre o assunto.

    Parabens pelo post mais que providencial!

    Quero deixar claro que gosto de futebol, mas devo lembrar Millor Fernandes:
    "O futebol, vocês sabem, "é a atividade que transfere a inteligência da cabeça pros pés".

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  2. Hehê!!! Meu caro Thiago... Em sua absoluta e luminar consciência, você acha que o tal do "povo" está realmente preocupado? Quer mais é rosetar! Escrevi há tempos, no Vote Brasil, que tendo panem et circenses esse ente insólito fica imensamente feliz... Nem é preciso usar chicote e forca.
    E Millor foi muito bonzinho: futebol é, para o tal do povo, a atividade que transfere a inteligência para o último tramo do trato digestivo, comumente chamado de bunda.
    Compartilho sua visão, mas tente discuti-la com fanáticos torcedores, organizados ou não: será linchado.
    Abraços, aprendi o caminho e sempre que puder voltarei, com sua licença.

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  3. Concordo com você é patético o comportamento da nossa nação, enquanto o povo brasileiro vai torcer pela seleção, os politicos aproveitam para pintar e borda no Brasil...é lamentável vê o povo se preocupar com futilidades e se esquecer do principal o nosso país!

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