22 de junho de 2010

O Ficha Limpa e as boas intenções

Oscar Wilde, o célebre escritor britânico, costumava dizer que as boas intenções são a ruína do mundo, pois as únicas pessoas que realizaram coisas relevantes foram aquelas que não tinham intenção alguma de fazê-lo. Pitágoras, filósofo e matemático grego, aconselhou os seus discípulos a "não se deixarem impressionar pelas ideias alheias" e a "não permitir que estas lhes afastem do projetos honestos". Ele chegou, inclusive, a prescrever uma ordem que deveriam ser seguida à risca por todos aqueles que se relacionavam - direta ou indiretamente - com ele: "Cala-te ou dize coisas que calham mais do que o silêncio". Todo esse cuidado com as boas intenções e, principalmente, com as coisas que eram ditas em função delas, não era fruto do acaso. Tanto Pitágoras quanto Oscar Wilde, sabiam que ao longo da história as boas intenções têm sido a ruína da humanidade. O porquê é relativamente simples de se enteder: quem, em sã consciência, teria coragem de vituperar contra coisas que são tidas como boas pela imensa maioria das pessoas?

Fiz essa breve digressão para tratar de um assunto que está na boca de todos desde a semana passada: o Projeto de Lei que ficou conhecido como Ficha Limpa. O projeto é uma iniciativa do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que reuniu mais de 1,6 milhão de assinaturas de eleitores desde o lançamento da proposta, em setembro do ano passado. Sua aprovação pelo Senado causou polêmica por conta de uma emenda do senador Francisco Dornelles (PP-RJ), que foi acatada pelo relator, Demóstenes Torres (DEM-GO). A emenda substituiu a expressão "tenham sido condenados" por "que forem condenados", no parágrafo que estabelece quais são os políticos alcançados pela lei. A intenção, segundo os senadores, era padronizar o projeto, que já trazia nas outras alíneas expressões com o tempo verbal no futuro. Essa alteração gerou inúmeras controvérsias e despertou a ira dos defensores do projeto, que argumentavam que ela teria sido pensada para garantir a impunidade dos políticos com ficha suja nas eleições de outubro.

Na última quinta, o TSE deu a discussão por encerrada declarando que a Lei da Ficha Limpa vale já para a eleição deste ano. A meu ver, a decisão é extremamente temerária, pois fere um dos princípios basilares da democracia: a presunção de inocência. Claro, com exceção de um ou dois articulistas políticos, ninguém na imprensa atinou para este detalhe. É compreensível, pois do jeito como as coisas andam, estas pessoas correriam o risco de serem confundidas com defensores da impunidade. Creio que o Supremo Tribunal Federal, órgão cuja principal atribuição é servir como guardião da Constituição Federal, também não dirá nada a respeito. Exceto, é claro, que alguém decida apelar a ele. Mas quem seria louco o bastante para fazê-lo? Certamente essa pessoa seria execrada pela opinião pública! E é justamente isso que me preocupa. Quando um grupo de pessoas decide moralizar a política interditado o debate sobre determinados temas, a democracia costuma ser a maior prejudicada.

O princípio de que uma lei só pode retroagir para beneficiar as pessoas é um fundamento do estado democrático de direito que colabora com a civilização e que nada tem a ver com a impunidade. Sem ele, inexiste segurança jurídica. Mas nem a OAB, nem os ministros do Supremo (exceção feita a Marco Aurélio de Melo) parecem se importar com isso. Mas de onde vem tamanha indiferença? É simples! A imensa maioria dos cursos de direito do nosso país foram loteados pelos inúmeros parcialismos que cercam a àrea — direito disso e daquilo — e perderam a dimensão superior de tão nobre profissão, que é proteger o indivíduo da arbitrariedade do Estado, dos poderosos ou dos grupos organizados que atentam contra os direitos e garantias individuais. Enquanto os nossos magistrados discutem os desígnios da sociedade naquilo que eles chamam de "direito achado nas ruas", a lei e a justiça são deixadas de lado. Até mesmo um dos princípios mais comezinos da democracia é atacado em nome das boas intenções de um povo inculto que por não suportar mais a leniência dos nossos tribunais com aqueles que transgridem a lei, acabou se tornando parte dessa trangressão.

É óbvio que reconheço o anseio da sociedade por justiça. Alegra-me ver que ainda somos capazes de sair desse estado de dormência para lutar por aquilo que nos é caro. No entanto, sou obrigado a lembrar que essa luta deve se pautar por aquilo que diz a lei maior do nosso país, que é a Constituição Federal. Não é admissível que uma nação que se pretende democrática recorra a expedientes tão baixos quantos leis de exceção para resolver problemas como corrupção, nepotismo e improbidade administrativa. Quando ignoramos este fato, transformamos aquela que poderia ser uma medida saneadora em uma verdadeira aberração jurídica. Por favor, compreendam: não estou dizendo que devemos deixar tudo do jeito que está, em absoluto. Estou dizendo que as mesmas pessoas que se organizaram para levar o projeto Ficha Limpa até a aprovação no Senado e, posteriormente, à sanção presidencial, poderiam ter criado uma espécie de censura moral aos partidos que mantêm candidatos condenados. Isso sim seria eficaz na luta pela moralização dos nossos quadros políticos. Isso sim teria alguma relevância a longo prazo!

Mas, infelizmente, a sanha moralizadora dos aiatolás do Ficha Limpa não pode esperar. Eles querem que tomemos providências para impedir os políticos corruptos de se candidatarem o quanto antes. Uma reivindicação justa, é verdade, mas que esconde inúmeras irregularidades. Vejam o que fizeram com a palavra inelegibilidade, por exemplo. No afã de condenar os políticos ficha suja, torceram o verbo até chegarem a conclusão de que a inelegibilidade não era uma punição, mas uma "condição", sem a qual o político não poderia se candidatar. Ora, se a supressão de um direito garantido a todos os cidadãos não é uma punição, o que é então? Difícil dizer! Na semana passada, o jornalista Reinaldo Azevedo escreveu algumas palavras sobre isso. Segundo ele, "a tal iniciativa popular — de fato, de uma ONG — conseguiu o prodígio de relativizar dois princípios da Carta: a presunção da inocência e a não-retroatividade da lei". É óbvio que ele está certo! Basta usar a lógica para percebê-lo.


E os absurdos não param por aí! Existem algumas questões de suma importância que passaram desapercebidas pelo noticiário político. Algumas semânticas e outras técnicas, mas todas igualmente relevantes. Entre as questões de natureza semântica há uma, em especial, que requer a nossa atenção: o "colegiado de juízes". Não existe, em nosso país, esse tal colegiado de juízes. A expressão, que parece ter saído de algum manual da novilíngua orweliana, foi criada para não melindrar os juízes de primeira instância que tiveram o seu trabalho desprestigiado pelo legislador. Na prática, a lei diz que esse negócio de condenação em primeira instância não conta e que a justiça própriamente dita só é aplicada a partir da segunda. Agora, digamos que haja um tempo "x" para que uma sentença de primeira instância chegue à segunda. No caso de candidatos ou pré-candidatos a cargos públicos, esse caminho seria encurtado, certo? Essa decisão colegiada de juízes, para o caso dos que querem disputar eleições, se daria numa sessão extraordinária ou já seria considerada a sessão ordinária mesmo, sendo a decisão definitiva daquela instância? Eu não sei e ate agora ninguém explicou.

E olha que ainda faltam as considerações de ordem técnica, como a presunção de inocência e etc. A democracia exige que o réu seja tratado como inocente até que o seu processo tenha sido julgado. Nesse caso, como ficam os políticos que foram impedidos de se candidatar e absolvidos, pouco depois, em virtude de uma apelação? Os prejuízos sofridos por este político seriam incalculáveis, pois além dos gastos com a campanha e etc, há o prejuízo eleitoral (de ter sido implicado em um processo por improbidade ou sei lá mais o que). Como recuperar o que esse político perdeu? Impossível, claro. Mas ninguém está minimamente interessado nessas questões. Sinceramente, não é razoável que se possam cassar direitos políticos de um cidadão brasileiro, sem que ele tenha sido condenado. Admitir tal coisa seria o mesmo que decretar o fim do Estado de Direito, essa bobagem, essa irrelevância… Desculpem-me a franqueza, mas é um debate estúpido!

Como se não bastasse, existem outros pontos que dão margem para multiplas interpretações, como por exemplo, o parágrafo que impede os politicos que tenham sido condenados por ocultação de bens e valores de se candidatarem. A princípio, a ideia parece maravilhosa, mas basta alguns minutos de reflexão para constatar que isso não passa de uma boçalidade. Querem ver? Enquanto discutíamos a aprovação do Ficha Limpa, Hugo Chavez, o caudilho venezuelano, emitiu uma ordem de prisão contra o presidente da última rede de TV independente da Venezuela. A acusação era de "ocultar bens" (automóveis) e "valores" (doláres) em sua casa, para manipular os preços do mercado. Percebem como uma ideia aparentemente boa pode ser usada para justificar toda sorte de arbitrariedades? E essas são apenas algumas das questões que estão deixando os juristas desse país de cabelo em pé. Existem outras, tão importantes quanto essas, que ainda carecem de esclarecimento.

Dizem que essa lei vai moralizar a política brasileira e sanear os nossos costumes, que orbitam entre a corrupção e oportunismo puro e simples. Eu, pessoalmente, acho isso um exagero. Estão superestimando a lei e as suas eventuais contribuições. Os 40 mensaleiros do PT, por exemplo, eram todos fichas-limpa. José "marimbondos de fogo me mordam" Sarney, idêm. Isso prova que é possível fraudar a democracia e o Estado de Direito tendo uma ficha mais limpa que as vestes da Virgem Maria. Já está mais do que na hora da população brasileira aprender que não é possível resolver problemas complexos com soluções simples e facéis. Por isso eu afirmo que aqueles que aprovam uma lei que pune retroativamente não percebem que estão pondo uma corda no próprio pescoço. No futuro, as pessoas verão que essa aberração irá nos fazer mais mal do que bem, pois na "sociedade da mobilização" as violações nunca vem desacompanhadas.


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2 comentários:

  1. Thiago, concordo com você no que toca ao viés "moralizador" que se tenta impor por meio do "Ficha Limpa", diploma normativo de duvidosa constitucionalidade, diga-se de passagem. Mas, como tudo que é duvido gera controvérsia e calorosa discussões jurídicas, como, por exemplo, a tese que não haveria qualquer problema na retroatividade da aplicação, uma vez que inelegibilidade não é pena em seu sentido estrito, formal. Enfim, eu não concordo com a tese. Quanto ao silêncio da OAB, isso não procede. Em nenhum momento vi a OAB se debruçar nessa campanha; pelo menos a seccional do Rio. No jornal da entidade desse mês há dois textos sobre o tema, um a favor e outro contra. O contrário é muito bom, por sinal. Diz ele que Mandela, p. ex., não poderia se candidatar no Brasil porque fora condenado por diversos crimes, inclusive por terrorismo.
    Não sei se você vai ao Arráia do Eduardo esse ano. Será sobre esse tema. Uma das atrações será uma grande fogueira para se "queimar" personalidades da políticas. O microfone vai estar aberto à fala. Acho que cabe uma intervenção.
    Abs.
    Raffa.

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  2. Raffa,

    A tese que prosperou no TSE, de que a que inelegibilidade não é pena em seu sentido estrito, é simplesmente absurda. Se a supressão de um direito não é uma punição, é o que exatamente? Difícil dizer! Por isso é preciso chamar a supressão do direito de "não-punição" para que a lei possa se sustentar.

    Mesmo que admitissemos que isso está certo, que o princípio da presunção de inocência só se aplica à seara penal e etc... Teríamos um conflito entre o princípio do Estado Democrático e o princípio da moralidade. Na dúvida, qual deles deveríamos aplicar, o princípio da moralidade ou o princípio democrático? Do meu ponto de vista, a garantia dos direitos políticos deveria prevalecer sobre o princípio da moralidade, já que é um dos fundamento da República.

    Veja a Lei de Improbidade Administrativa, por exemplo. Ela é clara ao determinar em seu art. 20 que a suspensão de direitos políticos se dá, apenas, após o trânsito em julgado da decisão. A Lei de Improbidade Administrativa respeita ao princípio da não-culpabilidade e está de acordo com o princípio democrático; uma vez que a justiça pode realizar a execução provisória da sentença, sendo vedada apenas a suspensão dos direitos políticos do acusado. Claro, muita gente confunde isso com impunidade, mas você sabe muito bem que não é! O principio da não-culpabilidade ou presunção de inocência, não existe para proteger os culpados. Ele existe para proteger os inocentes dos abusos do Estado e garantir a segurança jurídica.

    Além disso, você já atentou para o que está escrito nas alíneas "g" e "l", do inciso I, do art. 1º da lei? Na alínea "g" o texto diz serem inelegíveis "os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa". Nesse caso, não a rejeição das contas por irregularidades insanáveis não é suficiente para impor a inelegibilidade. Será preciso que, além da rejeição das contas, se configure ato doloso de improbidade administrativa. Rejeitadas as contas, mas não configurando improbidade administrativa, o candidato NÃO está inelegível. Esse é um dos pontos em que a alteração da Lei de inelegibilidades ao invés de benefícios trouxe malefícios ao quadro normativo.

    A situação na alínea "l" é ainda pior. O texto diz que são inelegíveis "os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito". Nesse ponto o legislador, afoito por impor a inelegibilidade àqueles condenados na tal da "instância colegiada", acabou metendo os pés pelas mãos. Segundo esse texto, somente àqueles condenados como incursos nos arts. 9º e 10 da Lei de Improbidade, cumulativamente, poderão ser apenados. Dessa forma, nem os Garotinhos da vida serão considerados inelegíveis.

    Enfim... É o típico caso em que a emenda saiu pior, muito pior, do que o soneto! Abrimos mão da nossa segurança jurídica por uma lei, que no fim das contas, não vai fazer uma terça parte daquilo que promete!

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