9 de junho de 2010

A civilização e a barbárie

Essa semana dois profissionais de áreas distintas anunciaram as suas aposentadorias. Em circunstâncias normais não haveria absolutamente nada de extraordinário nessa notícia, mas o que está por trás do afastamento desses profissionais do mercado de trabalho é um tema por demais importante. Claro, estou falando de Helen Thomas e Kurt Westergaard. Ela é a mais antiga jornalista a cobrir a Casa Branca e ele é um cartunista dinamarquês. Ela caiu em desgraça após ter dado uma declaração infeliz sobre Israel e ele após ter desenhado uma polêmica caricatura do profeta Maomé no jornal dinarquês, Jyllands-Posten.

A primeira vista, trata-se de um episódio corriqueiro, sem qualquer importancia para o restante do mundo. Mas, se olharmos com a devida atenção, veremos que as razões por trás da aposentadoria dessas duas pessoas não tem absolutamente nada de corriqueiro ou normal. Na verdade, esse episódio acentua ainda mais a diferença entre a civilização e a barbárie, deixando claro que o mundo tal como nós o conhecemos, ainda flerta com ambas na mesma medida.

O caso de Helen é emblemático! Ele demonstra o quanto o preconceito e a desinformação, praticamente irmãos siameses, convivem em pé de igualdade. Há pouco mais de dez dias, o site RabbiLive.com, perguntou a jornalista se ela se tinha algo a dizer sobre Israel. Diante da pergunta, Hellen disparou: "Diga a eles [israelenses] para darem o fora da Palestina (…). Eles podem ir para casa, para a Polônia, a Alemanha, os Estados Unidos, qualquer outro lugar". A declaração foi parar no Youtube e Helen foi alvo de uma saraivada de críticas, que mobilizou até o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs.

Na sexta, ela tentou se desculpar dizendo: "Eu lamento profundamente os comentários que fiz na semana passada a respeito de israelenses e palestinos. Eles não refletem minha crença sincera de que a paz no Oriente Médio só será possível quando todas as partes reconhecerem a necessidade de tolerância e respeito mútuo. Espero que esse dia chegue logo". O gesto não foi capaz de aplacar a fúria dos críticos que continuaram a exigir a sua demissão. Ontem, a empresa de comunicação Hearst, para a qual Hellen trabalhava, anunciou a sua decisão de se aposentar.

O caso do cartunista dinamarquês Kurt Westergaard é um pouco diferente. Não foi uma censura moral que dificultou o seu trabalho e antecipou o desejo de se aposentar. Muito pelo contrário! Westergaard deixou o jornal onde trabalhou nos últimos 27 anos, porque existem graves ameaças contra o jornal e contra ele próprio.

O cartunista diz esperar que sua decisão colabore para diminuir a pressão sobre o Jyllands-Posten, onde, em 2005, foi publicada uma charge em que o profeta Maomé aparecia com um turbante em forma de bomba. Contra Helen, felizmente, não houve nem deve haver ameaças de morte. Westergaard, por outro lado, sabe que assim como o escritor iraniano Salman Rushdie, está correndo risco de vida.

Os judeus e não-judeus de várias partes do mundo podem ter ficado indignados com as opiniões de Helen, mas não instaram os seus pares nos EUA a matá-la. Já os muçulmanos que saíram às ruas contra Westergaard, pediram a sua cabeça — ou melhor: prometeram entregá-la.

Joern Mikkelsen, editor do Jyllands-Posten, disse que o cartunista "deixou uma marca no jornal", mas admitiu: "Esses últimos cinco anos têm sido difíceis para ele e para o jornal". Falando em defesa da liberdade de expressão, acrescentou: "A iniciativa [da charge] se provou mais necessária do que qualquer um poderia imaginar".

Há, óbviamente, uma diferença entre pregar a extinção de um país e fazer uma abordagem crítica, por mais estúpida ou generalista que seja, sobre um personagem histórico ou um ícone de uma religião qualquer. Não dá para igualar as duas aposentadorias. Uma vem para provar que a civilização democrática exige limites; outra vem para evidenciar que a barbárie não os reconhece. O motivo que leva à aposentadoria de Helen torna o mundo mais civilizado; o que leva à aposentadoria de Westergaard, torna o mundo mais bárbaro.

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Um comentário:

  1. Curiosamente minha postagem recente tem no texto que antecede um conto um comentário que fala dessa coisa deprimente em que vivemos. O mundo está cada vez mais chato e as pessoas estão ficando moralistas e intransigentes. O humor do cartunista virou protesto. Imagine se os cariocas resolvessem ir as ruas para protestar contra o desenho dos simpsons em que eles visitam o Rio?

    Um mau sinal da vida é quando até o humor nos parece sem graça.

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