27 de maio de 2010

Tudo pela cultura nacional

Acabo de saber, por meio do blog do Rodrigo Constantino, que o senado aprovou ontem um Projeto de Lei que obriga as escolas públicas de todo país a exibirem sessões mensais de filmes brasileiros. A proposta do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) foi apreciada em caráter terminativo na Comissão de Educação, Cultura e Esporte e agora segue para a Câmara dos Deputados, antes de ser sancionada pelo presidente. Se a lei for colocada em prática, as unidades de ensino básico do país terão que separar pelo menos duas horas por mês da grade extra-curricular para exibições do cinema nacional.

Quando não mais indignar-me é porque estou envelhecendo, dizia André Gide. Se assim for, o Brasil me promete eterna juventude. Nos estertores do século passado, Cristovam Buarque, ex-governador do Distrito Federal e hoje senador da república, afirmava em seu cartão de fim de ano: "O século XX criou o computador e o flanelinha, a nave espacial e o trombadinha, o robô e o pivete, o internauta e os cheiradores de cola". O sofisma não só passou impune, como foi citado como um momento de brilhantismo do governador.

Fosse eu o século XX, processava o sujeito por calúnia e ainda exigia indenização por danos morais. Quem criou o computador e a nave espacial não foi o século, mas os Estados Unidos. Quanto aos flanelinhas, trombadinhas e cheiradores de cola, estes são coisas nossas, como a poróroca, o carurú e a jabuticaba. Sofismador de mão cheia, Cristovão Buarque juntou avanço tecnológico e miséria no mesmo saco e os atribuiu ao tempo. Ora, a Europa vive no mesmo tempo que nós e lá não encontramos os flanelinhas, trombadinhas e cheiradores de cola que, à semelhança dos juízes classistas, dos reitores eleitos por bedéis e dos cheques pré-datados, vemos em nosso grotão tupiniquim. A frase do governador é típica dos patrioteiros ufanistas: o Brasil é lindo e suas mazelas são decorrências do tempo que passa.

Mal saiu da prancheta, o projeto já começou a gerar controvérsias. Rosalba Ciarlini, senadora do DEM, partido tão venal quanto o PT, deu dois pareceres totalmente diferentes sobre o dito cujo. Em maio do ano passado, defendeu sua rejeição: "Esse tipo de norma, por sua rigidez, conquanto possa servir a interesses diversos e estranhos à escola, pouco ou nada contribui para a melhoria do ensino. Ao contrário, pode diminuir a margem de autonomia e de flexibilidade dos estabelecimentos de ensino". Mas em novembro, voltou atrás, e se desmachou em elogios para a proposta, sob a alegação de que a obrigatoriedade das escolas exibirem filmes nacionais "será benéfica para ambos, estudantes e indústria cinematográfica. A produção nacional, com raras exceções, tem qualidade plástica e conteudista irretorquível, diversidade temática e de público-alvo".

As artes nacionais, de tão excelentes, vivem hoje de esmolas do poder. Tanto escritores como cineastas, artistas plásticos, atores de teatros, são humildes pedintes de verbas governamentais, que estendem o chapéu ao Planalto e vivem de caridade pública. Como se não bastassem os subsídios que já existem (Lei Rouanet e Lei do Audivisual), o governo quer criar outros tantos para estimular uma industria de péssima qualidade que produz obras que ninguém, em sã consciência, quer assistir. Daí a ideia estapafúrdia de expor as crianças e os adolescentes ao cinema nacional. Os nossos burocratas acreditam que se os alunos da rede pública de ensino foram expostos a essas películas, vão desenvolver o senso estético necessário para passar a aprecia-las. Segundo Cristovam Buarque, "a médio e longo prazo, o público poderá de fato financiar o cinema, como acontece em outros países".

Que outros países, senador? Estará Vossa Excelência se referindo aos extintos países socialistas, onde toda arte dependia da complacência do poder? Decerto não está se referindo aos Estados Unidos, onde um cineasta de peso, como Stanley Kubrick, teve que gastar até o seu último vintem para rodar Apocalipse Now, sem receber qualquer contrapartida do Estado. Certamente o senhor não está se referindo à Itália, que deu ao mundo um Fellini sem jamais meter a mão no bolso do contribuinte.

Para a cineasta e professora do curso de Audiovisual da Universidade de Brasília, Dácia Ibiapina, a proposta será muito bem recebida entre os produtores e diretores de cinema, que convivem com um mercado exibidor restrito. "O ideal era que naturalmente os brasileiros demandassem seu cinema, mas, como a gente vive num país em que a indústria cinematográfica tem muita dificuldade de se afirmar e muitos filmes nem chegam a ser lançados, mecanismos como essa lei podem ajudar a reverter essa situação".

Claro que será muito bem recebido pelos produtores e diretores de cinema; estes corruptos que não conseguem fazer arte decente e dependem do Estado para escoar a sua produção de enésima qualidade. Fico me perguntanto por que cargas d'gua eu, brasileiro, tenho de ver cinema brasileiro? Vejo o cinema que me agradar, ora bolas! Os distribuidores já nos impõem o cinema ianque, os Titanics, as Arcas Perdidas e os Avatares da vida. Agora o Estado brasileiro passa a impor os abacaxis nacionais. Aqui entre nós, os abacaxis do Norte pelo menos têm melhor gramática.

Não bastasse o contribuinte financiar esta mediocrada que faz cinema, teatro e literatura no Brasil, agora os filhos dos contribuintes terão de engolir goela abaixo as "obras" – no sentido pejorativo do termo – dos medíocres amigos do poder. A medida é de um viés totalitário que sequer foi sonhado pelos países comunistas. Neles, o cinema era estatal, mas pelo menos não era imposto em todas as escolas.

Nestes dias em que se luta contra o ensino da religião nas escolas públicas, urge que lutemos contra uma medida ainda mais grave: o projeto do senador Cristovão Buarque. O Senado já o engoliu e a Câmara certamente o aprovará. É óbvio que o filho do Brasil o sancionará. Você imaginou seu filho sendo obrigado a assistir odes a Lula e a Chico Xavier? Mais apologias a terroristas e traficantes de drogas? Esta corrupção, com patrocínio do Legislativo, jornal algum denuncia. Também pudera! Suas páginas estão cheias de escritores, atores e artistas que são verdadeiros gigolôs do poder. Que nada valem por suas obras e que só são conhecidos porque impostos a um público indefeso. A União Soviética morreu há duas décadas, mas o seu modus operandi não.

Se as coisas continuarem no pé em que estão, daqui há pouco estaremos defendendo a imposição de mais duas horas de teatro nacional aps alunos da rede pública de ensino. Mais outras duas de Rede Globo. Mais outras tantas de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. Mais duas de Xuxa e Sílvio Santos. E mais duas – por que não? – de Edir Macedo e R. R. Soares. Tudo pela cultura nacional.

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5 comentários:

  1. Amigo, sinceramente não entendi a proposta do texto. Não sou eleitor do Cristovam, mas é fato que sua proposta é interessante, é válida. Uma passagem marcante do texto me indignou: "Quem criou o computador e a nave espacial não foi o século, mas os Estados Unidos. Quanto aos flanelinhas, trombadinhas e cheiradores de cola, estes são coisas nossas, como a poróroca, o carurú e a jabuticaba." Então pera aí, os EUA e o Brasil estão fora do século XXI, estão num espaço e tempo relativo em que os fatos são díspares do movimento internacional e a-histórico. Isso? Então a geração yuppie, os mendigos europeus, os games japoneses não tem nenhuma relação, o que chamaram de revolução informacional, ou capitalismo desenfreado, isso não existe, são países em universos paralelos?
    É óbvio que os trombadinhas, que os pivetes são reflexos desse século, a miséria desregrada é fruto desse sistema. Se não for, devemos brigar pela patente.
    Confesso que tenho minhas restrições aos subsídios do governo em relação à arte, principalmente pelo que foi feito pela Embrafilmes (enriquecendo meia dúzia), mas admito que a Lei Rouannet e outros incentivos (Petrobrás e etc.) são cruciais hoje para o artista.
    Devemos sim ter 2 horas de cinema nacional, o crescimento de nosso cinema nas últimas décadas é vertiginoso. Passar um Gláuber Rocha, Nelson Pererira dos Santos, o cidadão conhecer o cinema brasileiro bom. Criar um diálogo, dar espaço à oitava arte, tão alijada pelos blockbusters.
    Por que não Chico Buarque nas provas, audições de Caetano Veloso, aulas sobre Dorival Caymmi?
    Me desculpe, mas não entendo sua revolta.

    F.M.

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  2. Sinceramente...sigo confiante em um dia ler um texto em que concorde com você de cabo a rabo.

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  3. Salve, salve!
    Você escreve muito bem, tem muita clareza nas palavras e sabe onde usa-las.
    Mas sou meio que obrigado a concordar com o que disse o Flávio Morgado ao comentar o texto. "Não entendo sua revolta".
    Quando a maneira de ver o mundo, recomendo muuuuiiitãooo esse cara: Fritjof Capra, os trabalhos dele são foda e rola uma explicação sobre compreensão ciclica e tudo mais.
    No mais... Eu sou favoravel a exibição de cinemas nacionais, cantar hino, leitura, desenho, poesia e música... Quanto aos problemas da educação, aí sim Rubem Alves neles e tudo certo.
    Forte abraço!!!

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  4. Meus caros,

    O motivo da minha revolta é um tanto óbvio: quando os burocratas do governo passam a ditar o que os alunos da rede pública devem ou não assistir, a autonomia dos professores vai para o espaço!

    Além disso, sou contra esse projeto de lei porque a ideia de subsidiar o que quer que seja me causa arrepios. Ao escolher financiar este ou aquele artista, o governo está utilizando o dinheiro público para fins estritamente privados. Por que eu, que não gosto de circo, deveria ser obrigado a contribuir com uma parcela dos meus impostos para financiar as atividades do Cirque du Solei?

    Compreendo o descontentamento de vocês, mas dizer que essa farra com o dinheiro público irá nos beneficiar é o fim da picada. Quando a arte se torna um canal usado por um partido ou mesmo por um grupo de pessoas para expor as suas ideias, ela deixa de ser arte e passa a ser propaganda.

    Na prática, o que o governo quer é ter o direito de escolher quais manifestações artísticas os alunos da rede pública devem assistir. Nesse processo, não seria estranho de alguns produtores e cineastas resolvessem dar alguns trocados para que os nossos burocratas prefiram os seus filmes ao invés de outros, de melhor qualidade. Seria a volta da política do balcão de favores.

    Isso para não falar que o projeto contraria as leis do mercado. No livre mercado, os produtores, inclusive de eventos culturais, precisam atender a demanda dos consumidores. É por isso que os filmes de Hollywood conquistam tanto público, enquanto os arrastados filmes franceses, feitos para agradar os produtores "intelectuais" simpáticos ao governo, costumam ficar com as salas vazias. É o público que manda, gostemos ou não de sua escolha. A verdadeira democracia consiste em garantir a liberdade de escolha dos consumidores. Ainda que eles sejam apenas alunos da rede pública de ensino!

    Quando o governo fala em "democratizar" a cultura, criando um canal para escoar os filmes que contam com pouca ou nenhuma bilheteria, ele está afirmando que são os burocratas do governo que devem decidir o que VOCÊ deve assistir. Algum cineasta engajado do Acre receberá uma gorda verba para fazer um filme que ninguém quer assistir, provavelmente fazendo propaganda do próprio governo. O ministro ataca a "lógica do mercado", que nada mais é do que a liberdade de escolha de cada um, e voui là, o filme passa a ser exibido em todas as salas de aula do país. É como no regime fascista, onde o foco era voltado para o produtor e não o consumidor.

    Norbert Elias, biográfo de Mozart, nos conta que "ele lutou com uma coragem espantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e senhores". Naquela época, a decisão de abandonar os seus patronos e tentar ganhar a vida como um "artista autônomo", era algo bastante ousado e inusitado. Mesmo assim, Mozart apostou no seu talento e seguiu em frente.

    A reforma proposta pelo senador parece um retrocesso aos tempos anteriores a Mozart, onde o patrono dá as cartas. É uma estrovenga jurídica que só poderia ter dado as caras por aqui.

    É estarrecedor! Enquanto o mundo luta para se tornar independente, os brasileiros clamam por mais e mais dependencia. Enquanto os Mozart's da vida vão se libertando do regime de mecenato, o Brasil tem até uma lei para que as pessoas entrem nele. E mais, espera-se que o governo faça pelos artistas aquilo que o povo decidiu conscientemente não fazer: fornecer apoio e audiência para obras de qualidade extremamamente duvidosa, como os filmes "Lula, o Filho do Brasil" e "Chico Xavier". Inacreditável!

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  5. É, meu caro amigo Thiago.
    Não discordo totalmente, mas também não concordo totalmente. Acho que determinar duas horas de filme nacional na grade não é a melhor saída para valorizar nosso cinema ou dar uma dose de culturna verde e amarela para nossos estudantes. O ideal seria dar a ele subsídios para que eles experimentassem um pouco de cada tipo de cinema para, depois disso, escolherem seu estilo favorito. Mas, e quanto aos livros que lemos? Vc acha que os professores têm liberdade de escolher os autores que querem? Não. Quanto ao ensino de história limitado aos pequenos e simples fatos. Vc acha que os mestres têm liberdade se aprofundar? Não. Quanto à liberdade dos professores, infelizmente não é o melhor argumento. Quanto às suas críticas ao cinema nacional, concordo que não curta ou admire, mas há quem deixe de ver um clássico francês para se deliciar com um simples longa nacional sobre a vida no nordeste ou em uma favela carioca. As identificações são diferentes. Mais uma vez, acho que você está deixando de admirar e ver o lado bom das diferenças. Onde está escrito que filme nacional é ruim? Essa é a sua opinião. Não precisa ser a de todos.
    Quanto a uma padronização, isso deve acontecer com o ensino público. Infeizmente. Se não, há diferenças entre o ensino entre as escolas. A liberdade de criação hoje pelos mestres já é mínima. Não entendo quendo você associa essa prisão somente aos supostos obrigatórios filmes nacionais. Quanto aos incentivos, eu pergunto: Vc, que é um cara inteligente, bancaria do seu bolso uma obra de arte sua que poderia ir para as telas do cinema? bjs e até a próxima!

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