13 de maio de 2010

A nova censura

Ontem à noite eu assisti ao brilhante "Adeus, Lênin", de Wolfgang Becker, ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim. O filme, ambientado na antiga Alemanha Oriental, começa algumas semanas antes da queda do Muro de Berlim e conta a história de Christiane, uma apaixonada colaboradora do regime comunista. Um dia, ela presencia uma manifestação contra o regime e vê o seu filho mais novo, Alex, sendo espancado e preso pela temível Stasi. Chocada, ela sofre um colapso e entra em coma.

Quando Christiane desperta, oito meses depois, o médico revela a família que seu coração está extremamente debilitado e que qualquer choque será fatal. Nessas circunstâncias, os filhos se perguntam: como explicar a mãe que o Muro de Berlim caiu enquanto ela convalescia? A solução encontrada por Alex é manter, pelo menos dentro do apartamento da família, a Alemanha Oriental viva. Para isso, ele cria uma farsa elaborada e inicia uma frenética luta para manter todas as influências externas longe do santuário socialista que montou em sua casa.

O apartamento é redecorado com os trastes da era socialista que haviam sido jogados em um depósito e a família é intimada a se vestir com as roupas que eram moda no antigo regime. Tudo vai bem, até o dia em que Christiane pede aos filhos para colocar a TV em seu quarto. Diante da possibilidade de ver a mentira ruir, Alex começa a produzir um programa de televisão no melhor estilo da finada Alemanha Oriental e recria, dentro do velho apartamento, uma RDA outrora esquecida. Assim como na literatura de Orwell, aqui a TV também aparece como falsificadora da realidade.

É evidente que as reiteradas tentativas do protagonista de recriar o "paraíso socialista", demonstram que é ele quem está sofrendo com a nova ordem. A iminência da vida adulta faz com que Alex permaneça aferrado aquele conto de fadas. Essa recusa em aceitar as responsabilidades decorrentes da maioridade fica explícita quando a sua namorada, uma enfermeira soviética chamada Lara, começa a indagá-lo sobre o porque de não dizer a verdade.

Mas não foi a Síndrome de Peter Pan do personagem principal que me atraiu e sim uma cena recheada de humor que retrata a desídia de um personagem histórico muito famoso: Cha "El Chancho" Guevara. Quando assisti o filme pela primeira vez, notei que entre os trastes da era socialista que haviam sido jogados no lixo, está um pôster de Che Guevara. É isso mesmo! No filme de Becker, Che não passa de um ícone jogado na lata de lixo. Foi na expectativa de me deleitar, mais uma vez, com esse irônico relato que decidi assistir a reprise do filme. Mas, para o meu espanto, a cena em que a imagem de Guevara é retirada do lixo, havia sido cortada.

A princípio eu achei que tivesse sido desatento e cheguei a retroceder alguns quadros para ver se não havia perdido a tomada. Vi, atentamente, o personagem principal recolocar a foto de Honecker na parede e o livro de Anna Seghers na estante. Esperei, pacientemente, até que chegasse a vez do pôster de Che Guevara, mas não aconteceu nada. Como num passe de mágica, o pôster de Guevara ressurgiu na parede sem qualquer explicação. Era como se ele nunca tivesse saído de lá... Como se nunca tivesse sido atirado na lata de lixo!

Hoje de manhã, entrei na Internet e procurei saber o porquê da obra ter sido mutilada dessa forma. Foi então que eu descobri que a distribuidora do filme na América Latina havia julgado a imagem por demais chocante. Pois é! Mais de duas décadas após a queda do Muro de Berlim, nós ainda temos stalinistas de plantão preservando a imagem de um pistoleiro internacional a serviço do comunismo. Ficou claro que da mesma forma que Stalin mutilava fotos para impor ao povo soviético uma versão falseada da história, os censores sulamericanos mutilaram o filme para manter intacta a imagem de idílica de Che Guevara. Tudo com a intenção de preservar o mito do apparatchik de gatilho fácil e sem escrúpulos.

Não chega a ser uma surpresa. No hall das personalidades "da esquerda", Che ocupa um lugar de honra e seus admiradores fazem de tudo para impedir que a sua imagem seja maculada. A famosa foto tirada pelo fotografo Alberto Korda e imortalizada no desenho do artista plástico irlandês Jim Fitzpatrick, talvez seja o maior exemplo disso. Quando ela está associada a causas nobres, não só pode como deve circular a vontade. Mas, quando está ligada a um objeto nada lisonjeiro, como uma lata de lixo... Ela tem que ser imediatamente censurada para não comprometer a imagem idílica do panegírico da esquerda.

Nos passado, filmes como "La Palombella Rossa", de Nanni Moretti, "East Side Story", de Dana Ranga, "Je Vous Salue Marie", de Jean-Luc Godard e "The Last Temptation of Christ", de Martin Scorsese, foram sumariamente censurados. Hoje, a censura é mais sutil. O filme passa, desde que ninguém blasfeme contra os sagrados ícones do hagiológico da esquerda!


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