31 de maio de 2010

Que Passárgada, que nada. Eu quero ir para o país dos Houyhnhnms!

Eu ainda não tive a oportunidade de ir ao país dos Houyhnhnms, mas bem que gostaria de ter ido. Lá não existe a palavra mentira. Se alguém diz alguma inverdade, eles dizem que está dizendo a coisa que não é. Os Houyhnhnms não possuem na sua língua vocábulos para exprimir a verdade ou a mentira. Assim sendo, duvidar e não acreditar no que se ouve é para os Houyhnhnms uma operação de espírito à qual não estão habituados. Quando são obrigados a isso, o espírito lhe abandona o corpo. Quem nos descreve essas peculiaridades é o capitão Lemuel Gulliver.
"- Recordo-me até de que, conversando algumas vezes com meu amo a respeito das propriedades da natureza humana tal como existe nas outras partes do mundo, e havia ocasião para lhe falar da mentira e do engano, tinha muito custo em perceber o que lhe queria dizer, porque raciocinava assim: o uso da palavra nos foi dado para comunicarmos uns aos outros o que pensamos e para sabermos o que ignoramos. Ora, se dizemos a coisa que não é, não procedemos conforme a intenção da natureza; faz-se um abusivo uso da palavra; fala-se e não se fala. Falar não é fazer compreender o que se pensa?

- Ora, quando o senhor faz o que se chama mentir, dá-me a compreender o que não se pensa: em vez de me dizer o que é, não fala, só abre a boca para articular sons vãos, não me tira da ignorância, aumenta-a.

- Tal é a idéia que os Houyhnhnms têm da faculdade de mentir, que nós, homens, possuímos num grau tão perfeito e tão eminente".
Estes excertos foram extraídos do livro "As Viagens de Gulliver", certamente a obra mais sarcástica já escrito sobre a espécie humana. Os Houyhnhnms, descritos pelo capitão Lemuel Gulliver, são cavalos. Em seu país vivem também os Yahoos, seres simiescos e vis, semelhantes aos humanos, que costumam subir nas árvores para jogar excrementos nos Houyhnhnms. O convívio com esses dois povos tão diferentes entre si, deixou o capitão Gulliver tão impressionado que ao voltar à sua Inglaterra natal, tomou distância de seus familiares e passou a freqüentar sua estrebaria onde passava longas horas conversando com os cavalos.

Conversar com os cavalos não é uma má ideia. Sobretudo em um país como o nosso, onde a todo instante lemos e ouvimos "a coisa que não é". A começar pelo chefe da nação, que consegue o milagre de transmitir ao povo onze mentiras a cada dez frases. A mentira é inerente a todos os políticos e não há como ser eleito sem recorrer a ela. E isso não é tudo! A mentira também é inerente aos advogados. Todos os dias, nossos ilustres rábulas nos brindam com novas e maiores mentiras para livrar a cara dos seus clientes que muitas vezes são políticos. É, portanto, um motocontínuo!

Não há, no entanto, como nos indignarmos com o fato dos criminosos confessos mentirem deliberadamente para preservarem a sua liberdade. Afinal, sabemos exatamente o que esperar de tipos assim. Contudo, nos indignamos com as mentiras daqueles a quem delegamos a condução do nosso país, pois acreditamos que eles são "homens de bem". Quando a mentira se torna saúde e verdade insânia, quem padece somos nós que permanecemos aferrados a ilusão da verdade. Daí em diante, o que se vê é uma espiral descendente que parece não ter fim. Mente o pai para o filho e o filho para o pai, mente o marido para mulher e a mulher para o marido. Até a história se converte em uma mentira: "A lenda é uma mentira que ao final se torna história", dizia Jean Cocteau.

Esse estigma nos acompanha há séculos. Devemos o nosso passado a uma mentira que nos foi contada pelos religiosos e, talvez por isso, tenhamos entregamos o nosso futuro à mentira que nos foi contada pelos ideológos. Camus costumava dizer que "a mentira é um belo crepúsculo que realça cada objeto". Pelo visto, ele tinha razão! Nos dias de hoje, ela é reproduzida pela imprensa como se fosse verdade e nas mãos dos cronistas ganha ares de aleivosia. Dessa forma, constroi-se um cenário insólito, onde aqueles que negam a mentira, passam a ser vistos como loucos, negadores da própria verdade. E não adianta fugir, pois a mentira é um fenomeno universal. Ela só não existe no país dos Houyhnhnms, que infelizmente não passa de um lugar fictício.

Mas, se a mentira é um fenomeno universal, por que cargas d'água deveríamos nos envergonhar? É simples! Devíamos nos envergonhar porque, ao contrário das outras nações do mundo, nós promovemos a mentira a categoria de direito inalienável e atribuimos aos mentirosos o adjetivo lisonjeiro "esperto", de "expertise" ou especialista. Durante as CPIs, que são constituídas para se chegar à verdade, os nossos magistrados concedem habeas corpus preventivos para garantir aos depoentes o sagrado direito de mentir. O leitor pode procurar no universo das nações uma única Corte que garanta aos seus cidadãos o direito de mentir, pois eu duvido que irá encontrar. Na maioria dos lugares do mundo, o prosaico hábito de mentir derruba os presidentes, mas no Brasil e ele que os sustenta.

Por essas e outras, devemos tomar cuidado com aquilo que dizemos. Não podemos nos esquecer que nos países em que a mentira é tratada como a norma, a verdade é vista como crime.

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Um comentário:

  1. BRAVO!!!
    Mas eu ainda fico aqui no complexo dilema do Comediante que sabe que o final da piada não tem graça...rs... Continue escrevendo o que pensa! E lembre-se sempre que nossas verdades (todas elas) são resultados de pequenas mentiras.
    Com os melhores cumprimentos,
    CARPALHAU

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