4 de maio de 2010

O STF e a Lei da Anistia

Na semana passada, o STF julgou a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) que visava alterar a Lei de Anistia de 1979. Os ministros acharam por bem manter a lei nos termos e no sentido em que foi aprovada PELO CONGRESSO em 1979, apesar de todos os protestos. Há quem diga que a Lei da Anistia, da forma como está, beneficia os torturadores e garante que seus crimes permaneçam impunes. Ora, a anistia (do grego amnestía, "esquecimento") é o ato pelo qual o poder público declara impuníveis, por motivo de utilidade social, todos os crimes, poíticos ou conexos, fazendo cessar as diligências persecutórias e anulando as condenações.

Não se trata, portanto, de anistiar os torturadores ou garantir que seus crimes permaneçam impunes, mas de fazer aquilo que é necessário para garantir o estabelecimento da democracia representativa.
Os promotores da revisão, e parte da imprensa, tentaram criar um confronto inexistente entre os que combatem a tortura e os que a admitem. A tese é de uma canalhice jurídico-intelectual ímpar, porque aposta na comparação entre a civilização e a barbárie e tenta ignorar o significado de uma anistia, tão bem explicitado por Paulo Brossard:
A Anistia, tal como foi concebida, é irreversível. Todos os delitos que foram anistiados, por força da lei, são apagados. É um princípio universal. Não é que se perdoe. Se apaga. É como se nunca tivessem existido. A anistia não é uma ato de justiça, nem de reparação. É uma medida de caráter político, no sentido mais amplo e mais rico da palavra. A lei apaga, por considerações que não são de ordem de justiça, mas são de ordem de conveniência, de utilidade. A Anistia é para pôr fim, para esquecer. (…) anistia não é justiça, é concórdia, é esquecimento. Não condena e não absolve ninguém. Apaga. Esquece.
Não resta a menor dúvida que de um ângulo moral, os torturadores merecem ser punidos. Aliás, de um ângulo estritamente moral, o sujeito que violenta e mata uma criança "merece" o linchamento. Mas será que esse é, realmente, o melhor caminho? Qual o modo mais eficaz de evitar que a tortura volte a ser usada como arma de combate político no Brasil? Uns dirão que é garantindo "a punição exemplar dos torturadores". Outros - como eu - dirão que é "preservando, rigorosamente, o estado democrático de direito".

Dizer que a decisão do STF "reconheceu o direito de torturadores à anistia" é uma leviandade. Terá a África do Sul endossado o racismo quando resolveu esquecer os crimes do apartheid? Terá a Espanha acatado como digna a violência dos fascistas de Francisco Franco? Não! Brasil, África do Sul e Espanha queriam avançar, sair do impasse, e fizeram um pacto político para isso.

O que me causa estranheza é ver que depois de três dêcadas, os maiores defensores da revisão desse pacto são justamente aqueles que foram contemplados por ele. Afinal, a Lei 6683, em seu 2° parágrafo, especifica:
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
Verdade seja dita, este parágrafo acabou caindo porque os legisladores da época concluiram que ele contrariava o disposto no caput do artigo. Assim, a anistia foi ampla, geral e irrestrita, COMO QUERIAM OS GRUPOS E MOVIMENTOS DE ESQUERDA, DIGA-SE. Todavia, é importante trazê-lo de volta a baila para que possamos compreender o movimento daqueles que agem como verdadeiros paladinos e pretendem fazer da sua causa um "imperativo categorico".

Pois bem! Os defensores da revisão não compartilham do entedimento de que os militantes que pegaram em armas durante a ditadura cometeram crimes de teorrismo, sequestro e atentado pessoal. Para homens como Fabio Konder Comparato e Tarso Genro, a luta por valores como a liberdade e a democracia justifica os seus métodos de atuação. Mas, será que justifica mesmo?

A legitimidade de uma causa não está nos fins que se pretende alcançar atráves dela, mas sim nos meios empreendidos por aqueles que pretendem obter tal conquista. Se não for assim, nos tornaremos maquiavélicos por natureza. O escritor e poeta Hélio Pellegrino, célebre pela sua militância de esquerda, dizia que
"o corpo, na tortura, nos acua para que nos neguemos enquanto sujeitos humanos, fiéis aos valores que compõem o nosso sistema de crenças". De fato, devemos nos manter fiéis aos valores que compõem o nosso sistema de crenças, haja o que houver.

Então, como explicar o desejo daqueles que tentam flexibilizar as leis e relativizar a moral insistindo em legitimar atos de lesa humanidade como o terrorismo? É simples! Além dessas pessoas não compartilharem dos valores da democracia representativa, eles possuem um sistema moral que beira as raias do absolutismo. Quem costuma discutir isso de modo mais refinado são os franceses, que inclusive, cunharam alguns termos muito úteis como, "angelismo" e "direitomismo" (não de tomismo, mas de "direitos-do-homem").

Os "direitomistas" são, de fato, absolutistas para os quais aqueles que, por acidente, violam ocasionalmente um direito humano secundário não se diferenciam em nada daqueles que o fazem programática, sistematicamente e em grande escala. Segundo eles, o "perfeito" é, de fato, inimigo do "bom", e eles não aceitam nada que não seja perfeito. A lógica do mal menor lhes é totalmente estranha, talvez abominável. São eles que, atualmente, empenham-se em provar que os aliados, por terem bombardeado Dresden ou Hiroxima, são tão ruins, talvez piores, do que os nazistas e os militaristas japoneses. Se alguém não é santo, então é demônio - e os demônios são todos iguais.

Para eles, se argumentamos que "Guantánamo e Abu Ghraib são ruins, mas não se comparam a verdadeiras máquinas de extermínio como Auschwitz ou os campos do Khmer Vermelho", nós não apenas estamos inocentando - aliás, tomando o partido de tudo de mau que possa ter ocorrido em Guantánamo -, como também estamos advogando em prol da tortura, defendendo o totalitarismo e etc. Como é mais fácil - e dá mais ibope - criticar, quem acaba saindo pior no retrato é justamente quem busca ver as coisas com um pouco mais de acúro.

É compreensível, afinal, chamar a atenção para os erros cometidos por aqueles que lutam pelos seus ideais não é tarefa fácil. Estes, mesmo que tenham defeitos, podem ser absolvidos por:

(1) serem vítimas das circunstâncias que os obrigam a agir como agem.
(2) estarem, ao fim e ao cabo, lutando em nome de objetivos louváveis: o antiimperialismo ou algo do tipo.

Há, de resto, um clima moral e intelectual em nossos tempos que não apenas permite como encoraja tal absolutismo. Praticamente ninguém ousa correr o risco de ser considerado "malvado": todos querem ser julgados bonzinhos, verdadeiros anjos de candura. Trata-se de uma espécie de "auto-angelização" (vale lembrar que Descartes refutou o "angelismo", com muita propriedade, em sua obra Meditações).

Em suma: o "angelismo" e o "direitomismo" são subterfúgios criados para impedir o debate em torno das complicações morais envolvidas em qualquer ação (ou inação) humana. Basta repetir o discurso dominante, e a pessoa está desobrigada de fazer quaisquer escolhas éticas, de pesar causas e conseqüências, de comparar caminhos ruins a caminhos piores (mas nenhum deles ideal ou perfeito).

Daí que, quando surge um fenômeno novo, como o golpe militar que depôs João Goulart em 64, as pessoas correm e buscam refugio no abrigo de categorias já familiares — antiimperialismo, luta de classes, revolta dos miseráveis, nacionalismo libertador etc — e que podem, portanto, ser equacionadas segundo os preceitos do discurso politicamente correto. Ora, isso não passa de hipocrisia! Quem transgride a ordem jurídica para fazer fazer justiça está, com absoluta certeza, vivendo a véspera de uma nova injustiça.

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Um comentário:

  1. Acho que seu texto é muito pertinente e faz pensar bastante. Você fecha de maneira maravinhosa com uma frase:"Quem transgride a ordem jurídica para fazer fazer justiça está, com absoluta certeza, vivendo a véspera de uma nova injustiça." A questão da lei passa por aspecto moral e chega infelizmente no "jeitinho Brasileiro" dito da pior forma possível. Para muitos qualquer tipo de reparação é pouco e outros nem terão acesso a essa reparação. Porém para outros é mais uma brecha para se favorecer. O buraco nesse caso é bem mais embaixo.

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