6 de maio de 2010

Considerações acerca da justiça, da ética, da moralidade e etc

Ontem eu assisti "Código de Conduta", do cienasta F. Gary Gray, na companhia da minha namorada. O filme, estrelado por Michael Jamie Foxx e Gerard Butler, conta a história de um promotor público que é perseguido por um homem atormentado pela perda da sua família e pela leniência do poder judiciário para com os assassinos. Apesar de ser repleta de clichês, a película levanta discussões interessantíssimas sobre as leis e a justiça.

O termo justiça (do latim iustitia, por via semi-erudita), diz respeito à igualdade de todos os cidadãos. É o princípio básico de um acordo que objetiva manter a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal (constitucionalidade das leis) ou na sua aplicação a casos específicos (litigio). Segundo Aristóteles, o termo denota, ao mesmo tempo, legalidade e igualdade. Assim, justo é tanto aquele que cumpre a lei (justiça em sentido estrito) quanto aquele que realiza a igualdade (justiça em sentido universal). A justiça também é uma das quatro virtudes cadinais e segundo a doutrina da Igreja Católica, consiste "na constante e firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido". É um conceito relativamente simples, capaz de ser compreendindo até pelo mais indouto dos homens. Ainda assim, as pessoas tem uma certa dificuldade em aceitá-lo e, posteriormente, aplicá-lo.

O históriador grego Heródoto, costumava dizer que "as pessoas preferem a medida justa à justiça rigorosa". Séculos mais tarde, o escritor norte-americano Henry Louis Mencken, afirmou que "é relativamente fácil suportar a injustiça; o difícil é suportar a justiça". De fato, as pessoas constantemente preferem conviver com a maior das injustiças à aceitar o menor dos castigos. Não poderia ser de outra forma, visto que raramente nos esforçamos para compreender conceitos como a ética e a moral, irmãs siamesas da justiça. É a ética - ou a moral, como preferirem - que se transforma em um valor social, que por sua vez, se transforma em lei. É correto, portanto, afirmar que não pode haver lei sem uma ética ou moral que lhe sirva de alicerce. Infelizmente, não é bem isso que vemos por aí!

O mundo contemporâneo é marcado pela imoralidade e a maneira como os homens conduzem as suas nações é um reflexo disso. Naturalmente, nenhuma nação tem o nenhuma tem o monopólio da imoralidade, mas algumas foram dotadas com uma quota extra que as torna exemplos de escolha numa investigação de filosofia moral. Ao incluir o Brasil entre elas, não tenho em vista as famosas taxas nominais de corrupção. Refiro-me a fenômenos de outra ordem, mais difíceis embora não impossíveis de quantificar.

Tomemos como exemplo a nossa literatura de ficção; escassa em personagens de grandeza excepcional, santos, heróis ou monstros e rica em figuras de farsantes, mentirosos, fingidores compulsivos e semiloucos de vários matizes, que se abrigam numa esfera de irrealidade, fugindo da própria consciência. Com uma ou duas exceções, os personagens do maior e mais significativo dos nossos romancistas são todos assim. Também o são os de Lima Barreto, Raul Pompéia, Marques Rebelo, Annibal M. Machado e tantos outros, sendo até covardia lembrar a figura de Macunaíma, na qual os brasileiros se reconhecem tão facilmente.


Uma vaga consciência de que há algo de errado com os padrões de moralidade da nossa gente perpassa as conversas familiares, as crônicas de jornal, os espetáculos de cinema e teatro, as novelas de TV, etc. Não estou querendo dizer que o brasileiro está mais propenso ao crime do que os outros povos, mas que ele demonstra possuir uma tendência, quase incoercível, a preferir o fingimento à sinceridade, a aparência artificialmente construída à realidade conhecida. É como se ele não fosse capaz de falar com a sua própria voz, sentindo-se compelido por um intenso desejo de aprovação a imitar o tom das conveniências momentâneas.

Desde os tempos de Lima Barreto, nos entregamos a ambições mesquinhas, a busca obsessiva de segurança contra inimigos imaginários, aos impulsos mais baixos do espírito humano, sem, no entanto, demonstrar qualquer tipo de remorso ou ressentimento por tão vil comportamento. Não raro, cedemos as tentações pecaminosas, as provas de vaidade, a cobiça, ao pedantismo e até mesmo, ao desprezo pelos semelhantes. Nesse processo, as vocações intelectuais e artísticas são especialmente sacrificadas, não só quando se vêem esmagadas pela pressão e pela chacota do ambiente, mas até mesmo quando se realizam, porque o fazem num sentido oportunístico e farsesco, o único que é possível nessas condições.

Nas últimas décadas, porém, essa deformidade moral crônica foi se acentuando de tal modo que começou a assumir as feições de uma sociopatia alarmante, disseminada sobretudo entre as classes mais cultas e com acesso aos meios de comunicação. Dia após dia, as opiniões dessas pessoas vão envenenando a moral dos cidadãos, fazendo com que eles se afastem de todo padrão universal de veracidade e moralidade, ao ponto de constituirem já um sistema ético peculiar, válido só no território nacional, fechado e hostil às exigências da consciência humana em geral, inacessível a toda cobrança superior de idoneidade e racionalidade.

O traço mais característico desse novo sistema é que seus criadores e representantes não têm a menor idéia de quanto as suas falas, atitudes e julgamentos são imorais, maliciosos e alheios àquele mínimo de franqueza. Decerto, o fator que mais contribuiu para isso foi a tomada dos meios de comunicação, do sistema educacional, das instituições de cultura e dos altos postos da política por uma geração marcada pelo sentimento de vitimização, acompanhado, inevitavelmente, da crença na bondade intrínseca e na recusa completa e absoluta de encarar seus supostos inimigos como seres humanos portadores de uma consciência moral, capazes de dar razão de seus atos e merecedores de um confronto justo.

O sentimento de impecância, que foi disseminado em todas as classes falantes deste país, predispõe a um discurso de acusação indignada que encobre os mais óbvios pecados sob a impressão de estar sempre discursando em nome de valores sublimes sufocados pelo mundo mau, quando, na verdade, o que torna o mundo mau é acima de tudo o número excessivo de pessoas más.

Um dos sintomas mais alarmantes dessa patologia é a fúria justiceira com que as autoridades e seus acólitos, os "formadores de opinião", investem contra delitos menores, sobretudo de ordem financeira, ao mesmo tempo que toleram, como detalhe irrisório, a taxa anual de 50 mil homicídios que faz do Brasil a nação mais cruel e assassina do mundo. Quando um magistrado exclama que 94 anos de cadeia são punição branda para a sonegação fiscal e delitos correlatos, ao mesmo tempo que assassinos em série, seqüestradores e traficantes de drogas são protegidos pela leniência das leis e celebrados como vítimas da sociedade má, está claro que uma nova classe falante subiu ao primeiro plano da cena pública, intoxicada de uma tal dose de rancor invejoso contra a "burguesia", que não hesita em conceber traficantes multibilionários como pobres vítimas do capitalismo, fazendo deles aliados na epopéia revolucionária da "justiça social".

José Veiga, um dos maiores autores do realismo fantástico, escreveu um livro quase profético sobre isso. O livro se chama "A Hora dos Ruminantes" e descreve, com um realismo assombroso, a rotina dos habitantes de Maraneima, uma cidade pacata que conta com pouquíssimos habitantes. Um dia, uma estranha comitiva de forasteiros se instala próximo a área urbana da pequena cidade. Devido a falta de educação com que se portam, eles passam a chamar a atenção de toda a população da cidade. Até que Amâncio Mendes, um intempestivo comerciante, toma a iniciativa de ir até a tapera, local onde os estranhos visitantes se instalaram. Ao voltar, Amâncio passa a agir estranhamente, como quem está "de rabo preso". O mesmo se dá com o carroceiro Germiniano, antes tão dono de si, mas que agora trabalha com exclusividade para os homens da tapera. E assim, um a um, os habitantes de Maraneima passam a ser envolvidos por esses estranhos visitantes.

Pois os ruminantes, aqueles tenebrosos visitantes, já chegaram ao Brasil. No princípio eles eram poucos, talvez não mais que um décimo da população, mas logo eles se tornaram mais de 180 milhões, ultrapassando em número a população humana de nosso país. O pior é que assim como aconteceu com a pequenina Maraneima, passamos a achar que os ruminantes foram embora, quando na verdade, nos tornamos tão parecidos com eles que ficou praticamente impossível identificá-los.

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3 comentários:

  1. Um discussão interessante. Quando você cita Heródoto e sua frase é muito bacana, porque expõe um pensamento contextual que polemiza o conceito e a prática da justiça. O que Heródoto chama de "medida justa" é o que os gregos chamavam de "Ideal Sophrosiné",a idéia de uma ponderação, de um equilíbrio que deveria ser imbuído ao espírito helênico desde o demagogo (ditador, governante) ao juiz, e somente os juízes que lançassem mão desse ideal, e o praticassem, poderiam dar alguma sentença. A justa medida busca trabalhar com a idéia mais básica de justiça, calcada na igualdade. O que era comum à uma sociedade daquela proporção. No entanto, essa discussão ganha força numa sociedade como a nossa, que o "olho por olho, dente por dente" nem sempre leva em consideração os olhos e os dentes em questão. A hermenêutica exacerbada do Judiciário acaba relativizando tudo e deixando o ideal de igualdade de lado. Podemos dicutir mais depois, mas gostei muito da postagem.

    F.M.

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  2. Ética e Moral estão ligadas, mas talvez sejam os temas que gerem mais polêmica. Toda discussão, seja qual for o assunto, descamba pra ética e moral. O fato é que como dizia o nosso filósofo bigodudo, a ética tem que ser revista o tempo todo, consequentemente a moral. Justiça pra quem? Pra que? Vingança? Corretivos para que sirvam de exemplo? Qual é a base da nossa justiça? Ou mesmo da nossa justiça individual? O que pra nós é ser justo? São perguntas que acirraram mais ainda essa discussão proposta nesse bom texto.

    Parabéns pelo Blog!

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  3. Acompanho no mesmo sentido dos dois comentários.

    Num país onde a imoralidade reina, este jamais sairá das correntes do atraso. Este atraso não é natural - foi politicamente forjado de cima para baixo.

    Este atraso foi forjado por um político (impropriamente chamado de estadista) que via que o Estado deveria tutelar os cidadãos nos seus litígios mais corriqueiros, com intuito de gerar a paz social e a mansidão. E onde mais havia esse litígo, esses conflitos mais comuns? No contrato de trabalho, pois o país estava começando a se tornar uma economia de mercado, quando a lei de terras insituiu a propriedade fundiária no país e com a crescente capitalização que se deu com a economia cafeicultora e a vinda de mão-de-obra qualificada (como os imigrantes italianos, alemães e japoneses).

    Esse homem que impletou o modelo perfeito de domínação política sobre os cidadãos foi Getúlio Vargas, que aplicou a doutrina de Castilhos, baseada em Auguste Comte, por sua vez inspirada em Rousseau e na sua visão de bondade infinita do homem (em outras palavras, "o homem é bom, mas a civilização o corrompe"). Depois que Getúlio tomou o poder, essa doutrina política do Estado-empresário, do Estado do assistencialista e do despotismo que se deságuou nas duas ditaduras (1930-45 e 1964-1985) não saiu mais dos holofotes políticos - isso sem contar as mazelas congênitas do tempo colonial, cujo efeitos estavam sendo combatidos ainda no Império.

    Basta ver que a República foi implementada por aqueles que defendiam a escravidão (não havia um programa abolicionista do partido da República de então). Por esse viés, os positivistas são os mais republicanos deles todos e sua doutrina é próxima do socialismo de Marx. Há uma carta publicada no marxism.org em que Marx defendia a escravidão e justificou a sua manutenção - em uma crítica brutal contra Proudhon.

    Qualquer semelhança a isso é coincidência.

    Se Dilma for eleita, será mais um passo na evolução desse lamaçal em que nos encontramos.

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