25 de maio de 2010

Jorge Amado e a Fortuna Moral

Termina hoje o Seminário Acadêmico Internacional sobre Jorge Amado, promovido pela editora Cia. das Letras e coordenado pelo departamento de Antropologia da FFLCH – USP. Infelizmente, nenhum dos professores presentes teve a coragem e a ousadia de mencionar a face menos lisonjeira da vida do baiano de Itabuna. Deve ser difícil para os intelectuais uspianos presentes no evento, admitir que o escritor brasileiro mais divulgado no exterior era um estafeta do nazismo, um agente do stalinismo e um roteirista oficioso a serviço da família Marinho.

Jorge Amado era um homem repleto de contradições aparentemente inexplicáveis. Em 1936, foi preso no Rio de Janeiro, por participar da Intentona Comunista, liderada por Luis Carlos Prestes. Contudo, em 1940, apenas quatro anos depois, assumiu a edição da página de cultura do jornal Meio-Dia (uma publicação favorável ao regime nazista). Mas como um aguerrido militante comunista se transformou num colaborador do regime hitlerista? A resposta é simples! Em 1939, o Ministro do Exterior Soviético Vyacheslav Molotov e o Ministro do Exterior da Alemanha Nazista Joachim von Ribbentrop, assinaram um pacto de não-agressão que ficou conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop. Amado, que era um stalinista convicto, se aproveitou do fato do seu ídolo ter se aproximado dos alemães para fazer o mesmo.

Felizmente, nem todos os membros do partido comunista compartilhavam dessa tese. Alguns ainda tinham brios e preferiram viver de acordo com as suas convicções a ensaiar uma aproximação com aqueles que até outro dia, eram os seus maiores inimigos. Uma dessas pessoas foi o escritor paulista Oswald de Andrade, que denunciou Amado como "espião barato do nazismo" e exigiu que ele se retirasse imediatamente de São Paulo. Diante da recusa do colega baiano, Oswald de Andrade decidiu retirar a sua inscrição do Partido Comunista. Mais tarde, o próprio Oswald decidiu falar sobre o episódio em uma entrevista:
"Diante de tantos erros e mistificações, retirei a minha inscrição do partido. Numa reunião da comissão de escritores, diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o Sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo, antigo redator qualificado do Meio-Dia. Contei então, sem que Jorge ousasse defender-se, pois tudo é rigorosamente verdadeiro, que em 1940 Jorge convidou-me no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois me informou que esse livro poderia me render 30 contos. Recusei, e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo alemão". (Excerto extraído do livro "Os Dentes do Dragão", Editora Globo, 1929)
É evidente que Jorge Amado jamais admitiu que havia trabalhado a soldo do partido nazista, mas alguns fatos posteriores vieram a corroborar a versão de Oswald de Andrade. O editor responsável pela introdução da obra do escritor baiano na Europa Ocidental, por exemplo, foi Hans Curt Werner Meyer-Clason. Um homem que, poucos anos depois, foi denunciado pela revista Der Spiegel, como espião do Terceiro Reich no Brasil. A acusação causou espanto, pois Meyer-Clason é o maior tradutor de literatura brasileira para a língua alemã e trabalhou com escritores como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa (este último, embaixador do Brasil na Alemanha de Hitler).

Em 1941, a Alemanha iniciou a invasão do território soviético pela Operação Barbarossa, obrigando Stalin a romper o Pacto Molotov-Ribbentrop. Com o fim do acordo de cooperação entre os dois países, Amado voltou a ser um militante comunista. Já como deputado federal pelo Partido Comunista, ele publica "A Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança". O panfleto, encomendado pelo Kremlin, foi traduzido e publicado nas democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo stalinista.

Para Amado, Prestes "é o herói que nunca se vendeu, que nunca se dobrou. Sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro". Para o escritor baiano, a prisão do Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro e líder da Intentona Comunista de 35, simbolizava o encarceramento do próprio povo brasileiro:
"Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza".
Em 1946, Amado assina a quarta Constituição Brasileira. Dois anos depois, seu mandato é cassado em virtude do cancelamento do registro do Partido Comunista. O escritor passa então a viver em Paris, onde convive com intelectuais como Sartre, Aragon e Picasso. Na década de 50, ele se muda novamente e passa a residir no Castelo da União dos Escritores, na ex-Tchecoslováquia. Lá ele escreve "O Mundo da Paz", uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja.

Em 1954, Amado publica os três tomos de "Subterrâneos da Liberdade", onde ele narra a saga do Partido Comunista no Brasil com a mesma desenvoltura e acuidade com que Homero narra o triunfo de Aquiles sobre Tróia. A obra é composta por três volumes distintos: Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel. Graças a estes três livros, Amado passou a ser visto como um exímio representante da literatura nacional. No entanto, não havia nada de "nacional" na literatura de Jorge Amado. Seus livros introduziram na literatura brasileira uma fórmula soviética conhecida como realismo socialista, famosa pelas contribuições de Maxim Gorki, Anatoli Lunacharski, Alexander Fadéev e Andrei Zdanov. Há bem da verdade, foi somente em 1958, com "Gabriela, Cravo e Canela", que Amado deixou de lado sua militância comunista e passou a fazer uma literatura brasileira; repleta de tipos folclóricos baianos. Infelizmente, as características desse novo gênero se pareciam muito com o do antigo.

De um lado estavam os bons, ou seja, os que se incluem na "chave" mística do "trabalhador", do "operário". Do outro lado estavam os maus, isto é, todos os outros, especialmente o "proprietário" e a "polícia", as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso. São patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes, imaginativos e incansáveis. Focos de um poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível. São indivíduos corajosos, sentimentais, poetas instintivos, verdadeiros modelos de solidariedade dos quais emerge uma nobreza que resplandece como um halo.

Já o "proprietário" é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas. É barrigudo, fuma enormes charutos, arrota sem nenhum pudor, vive repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis. É membro da sociedade secreta chamada "capitalismo", onde defende os seus interesses de maneira atroz, apresenta traços de covardia, desonestidade, egoísmo e ignorância. Não raro, é vendido ao dólar americano e se apresenta como um marido brutal e um pai perverso. É irritante, antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade. Enfim, é uma espécie de encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média assustava a si mesma.

Valendo-se dessa divisão maniqueísta, Amado pinta o mundo com as cores que lhe parecem mais apetecíveis e desenha um cenário onde o ditador espanhol Francisco Franco faz às vezes de um demônio ao passo que Joseph Stalin, é retratado como uma criatura quase divinal. Em mundo tão simplório quanto este, seus personagens se transformam em títeres inverossímeis e sem vida ou vontade própria. O personagem, par excellence, é o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão e personificado na figura de Stalin. A luta do PC é a luta - na ótica do autor - do povo brasileiro contra a tirania, no caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são os EUA, a Alemanha, os ditadores ibéricos Franco e Salazar, sem mencionar, é claro, a IV Internacional e os trotskistas.

No universo de Jorge Amado, o Bem é representado pelo partido e pelo proletariado. O Mal é representado pela burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam eventualmente seres camaleônicos, "traidores de classe" ou traidores do Partido. Não se pode dizer que essa seja uma fórmula original, pois desde o século III, os autores vêm dividindo o mundo em duas metades, uma boa e outra má. É espantoso que uma fórmula tão antiga tenha conseguido fazer tantos adeptos no século XX, impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação partidária aos personagens de um romance. A literatura de hoje está repleta de exemplos dessa dicotomia: Os representantes do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem café ou água mineral. Os maus bebem conhaque ou uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são gordos e mesquinhos. Os bons não têm posses. Os maus são proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são vivem em prol de si mesmos.

De fato, desde os primórdios a literatura nacional tem vivido as voltas com essa fórmula. De Manuel Antônio de Almeida, passando por Lima Barreto, até Jorge Amado, nossa literatura sofre com uma carência total e absoluta de bons exemplos. Os personagens, pícaros e de moral esgarçada, representam o triunfo da barbárie e se assemelham mais aos escritores do que a sociedade propriamente dita. Jorge Amado, por exemplo, passou a vida cantando as glórias do socialismo, mas foi o primeiro escritor brasileiro a felicitar pessoalmente Fernando Collor de Mello por sua vitória. De inimigo incondicional do capitalismo, o baiano se tornou seu sócio e colaborador, como nos mostra um trecho da entrevista que o velho escritor concedeu à tradutora francesa Alice Raillard, em sua mansão na Bahia:
"Sim, esta casa... Esta casa, eu digo sempre que foi o imperialismo americano que me permitiu construí-la! Era um velho sonho meu ter uma casa na Bahia. (...) Construir uma casa na Bahia? Eu tinha vontade, mas não o dinheiro. Foi então que vendi os direitos para o cinema de Gabriela à Metro Goldwin Mayer".
Este senhor, que empunhou com entusiasmo a bandeira do comunismo soviético e confessou sem nenhum pudor ter vendido a sua obra ao capitalismo, é a maior referência da literatura brasileira no século XX. Se for verdade que a arte imita a vida, então Dona Flor, a mulher que administrava tranqüilamente dois maridos, é uma espécie de Jorge Amado da ficção. Mas por que será que ninguém ousa dizer isso? Há algum tempo eu escrevi um texto dizendo que a censura de hoje é mais sutil, pois permite que a obra seja levada ao público, desde que não se faça nenhum insulto aos sagrados ícones do hagiógrafo das esquerdas. A omissão dos participantes desse seminário, que após dois dias de debates, não foram capazes de mencionar um único aspecto deletério da vida do escritor, ilustra muito bem isso!

Bookmark and Share

3 comentários:

  1. Jorge Amado é um dos maiores escritores da Literatura Brasileira. Ele escreveu o Brasil verdadeiro, não o Brasil inventado. Não houve e jamais haverá outro escritor que rompa com a vergonha de ser Brasileiro que nós insistimos em ter. Como disse Jobim: "O Brasil não se orgulha do BRASIL". Quem visita Hotel ecológico na Amazônia é gringo, brasileiro quer Disneylandia. Respeito muito sua opinião, mas a crônica reduz Jorge Amado e quase afirma coisas que nem se quer podem ser provadas. A obra de Amado é inquestinável por diversos motivos, mas o principal é a qualidade. Sei que não fala da obra e sim de "fatos" suspeitos, mas a obra não pode ser ignorada. Quanto ao comentário acima gostaria de lembrar que Jorge em vida jamais se preocupou com a Globo. A Globo sim, usou a obra de Jorge Amado diversas vezes, o que não acho ruim. Melhor usar Jorge amado do que um bossal desses qualquer. Quanto o aumento de vendas de seus livros, outra coisa normal por ter um filme de destaque. O autor de clássicos da nossa literatura jamais foi esquecido, mesmo porque faz parte de um grupo pequeno que é leitura básica para se conhecer a literatura Brasileira.

    Abs e siga em frente.

    ResponderExcluir
  2. "Anacronismo" é o nome que se dá a mais terrível falha que um historiador pode cometer. Para mim, uma postura anacrônica é uma insensibilidade.
    Contextualizar as situações consiste em compreendê-las, em dar vida ao passado, obedecendo suas vestes de hora passada.
    Há muito tempo venho maturando esta frase: "Para ser um iconoclasta, primeiro o sujeito precisa construir sua própria estátua."
    E aí me vem a cabeça Nietzsche, Nelson Rodrigues, Paulo Francis, grandes iconoclastas. E a frase ecoa. Perceba o tamanho da obra desse caras, perceba o arcabouço crítico desses caras, perceba o intuito desses caras. Nietzsche em sua ruptura paradigmática, Nelson Rodrigues no seu moralismo e crítica social da desordem, Paulo Francis no seu anti-esquerdismo. Nietzsche um filósofo, filólogo, conhecedor profundo da metafísica; Rodrigues, jornalista renomado, autor de livros geniais, teatrólogo profundo conhecedor da técnica; Paulo Francis, ex comunista, cientista políticos reconhecido internacionalmente. Frasistas, personagens de suas personalidades. Grandes estátuas. Isto foi para apenas contextualizá-los.
    Jorge Amado, escritor ímpar para a cultura nacional, literário único para a Academia, baiano símbolo, humor rasgado. Ex-comunista sim, militante do antigo stalininsmo, contudo, nascido em 1912, portanto, um jovem no auge da Guerra Fria. Talvez eu, em 1945, tivesse sido também um comunista. Nascido numa Bahia pobre, num país desigual e cercado de hipocrisia, tivesse em 1950 uma foto de Stálin com algumas velas e pátuas em torno. Mas em 1956 não, aí não. E pelo que sabemos, você e eu nascemos após 56, Amado não. Julga seu avô por ter usado pincenet?
    Ainda assim, sua obra é imensa, maior até que ele, e logo, maior que eu e você. "Gabriela, carvo e canela.", "A morte e a morte de Quincas Berro D'água" (que virou um belo seriado na TV Globo), "Capitães de Areia", e por aí vai, são obras que merecem, no mínimo, o respeito de uma escrita excelente, um humor raro e uma transcendência prosaica, no meu caso merece uma admiração absurda.
    Martelar esta estátua creio que não seja fácil, mas nada é impossível, porém, como admirador dos iconoclastas, vejo como único caminho a leitura voraz dessas obras, a leitura atenta a cada verbo, a leitura até maldosa de quem quer derrubá-lo, mas a leitura. No mais, o anacronismo de um julgamento moral não é válido.
    Abraço.

    F.M.

    ResponderExcluir
  3. Thiago, sobre Jorge Amado, gostaria que se você pudesse (e quisesse e se interessasse), lesse o artigo "Sobre foices, martelos e berimbaus", que escrevemos no Passavante (www.passavantecr.blogspot.com).

    Um abraço!

    ResponderExcluir