29 de abril de 2010

Sobre certas certezas

Está cada vez mais comum ver certas discussões, na internet ou na vida off-line, que acabam produzindo dicotomias entre simpatizantes de ideologias opostas. De repente, tudo se torna preto ou branco, sem que haja espaço para o cinza; você é 8 ou 80, esclarecido ou alienado, "petralha" ou "tucanalha". Cada lado defende suas posições com uma agressividade típica de torcidas organizadas, e o resultado se torna deprimente. Esse processo de amesquinhamento intelectual faz com que os debates se transformem em verdadeiras rinhas e demonstra o quadro lamentável em que se encontram os pensadores do nosso país.

A cada dia que passa, vejo mais e mais pessoas que só querem saber de ler textos que reiteram suas opiniões, ignorando solenemente tudo que entra em conflito com as suas convicções pessoais. Tudo em nome da liberdade, que não suportam, e da verdade, que ignoram. Sartre, por exemplo, fingiu não ter tomado conhecimento dos crimes hediondos de Stálin (talvez mais numerosos e mais atrozes que os de Hitler) para poupar o operariado francês de "entrar em desespero". É provavel que outros horrores, como os fuzilamentos em Cuba ou os massacre nas ruas de Ruanda, tenham ocorrido devido a nossa incapacidade em perceber e interpretar a realidade.

Talvez, o maior exemplo da cegueira voluntária que nos acomete sejam as discussões em torno da Revolução Cubana. Não existe o menor resquício de democracia nesses debates, porque os interlocutores não garantem ao outro o direito de discordar. O mesmo acontece com os textos sobre o assunto, alguns vêem Fidel como o diabo encarnado e outros o vêem como um anjo de candura. Graças a esse pensamento estúpido, está cada vez mais difícil encontrar textos como este, de Idelber Avelar:
"Cuba se transformou numa espécie de espelho distorcido onde cada um projeta uma visão que já traz de antemão. Amigos de esquerda viajam à ilha e voltam com relatos acerca de um povo muito orgulhoso do que fez. Mas também não dá para negar uma outra realidade: a da quase prostituição das relações pessoais com estrangeiros e a dura vida dos presos políticos. Aí eu não posso deixar de lamentar que as pessoas dedicadas a defender a Revolução Cubana - causa mui legítima - simplesmente não mencionem o fato. Vira uma ladainha: os defensores mencionam educação e saúde; os detratores mencionam a falta de imprensa livre e os presos políticos. Ambos têm razão, mas vão perdendo na medida em que se recusam a olhar a coisa por outros ângulos".
Escrevi este preâmbulo para falar da mais notória blogueira cubana: Yoani Sánchez. Formada em Letras e cansada de seu país, Yoani emigrou para a Suíça, em 2002. Em 2004 retornou ao farol socialista da América Latina, fundou a revista digital "Consenso" e criou o blog Generacion Y. Casada com Reinaldo Escobar, a blogueira faz uma especie de autópsia da revolução de 1959 e diz que seus posts, hidratados de humor, constituem uma "terapia pessoal para espantar o medo". Em seus textos, Yoani mostra que é uma observadora atenta da realidade que a cerca. E não me refiro apenas ao que Sanchez chama de "utopia imposta". Cito, por exemplo, um trecho em que ela fala, com viés otimista, da juventude de seu país.
"Esses jovens que vejo hoje, ensimesmados nos seus MP3 e com a calça abaixo da cintura, anseiam - como nós já ansiamos - pelo momento de estar 'no comando da casa' e trocar os móveis, renovar a pintura e convidar os amigos. Eles têm a mesma aversão ao que é herdado e o mesmo deleite com o proibido que todos que já passamos por essa idade também tivemos. Gosto da maneira como fazem de conta que nada lhes interessa, quando na realidade aguardam o momento de tomar o microfone, brandir a caneta, levantar o indicador. O hedonismo os salva da entrega incondicional e certo toque de frivolidade os protege contra a sobriedade das ideologias".
Apesar do sucesso do blog Genercaion Y, volta e meia surgem pessoas lhe acusando de ser patrocinada pelo governo americano. É bom que se diga que até hoje ninguém apresentou uma única prova de que a blogueira esteja a serviço da CIA ou de qualquer outra agência americana. Ao que tudo indica, os boatos são apenas isso... Boatos! Na maioria absoluta das vezes, os rumores acerca da idoneidade de Yoani são ecos da voz de Fidel Castro, que afirma que ela vive num "confortável apartamento", com direito a serviço de internet banda larga e tudo. Uma realidade bem diferente daquela que os jornalistas e documentaristas que a visitaram descreveram, ao regressar aos seus países de origem. Aliás, os cineastas Peppe Siffredi e Raphael Bottino foram a Cuba, filmar o documentário "O último discurso" e disseram que ela vive num conjunto popular e usa a internet em hotéis, pagando por isso ou disfarçando-se de turista.

Infelizmente, os depoimentos de intelectuais e artistas que regressaram recentemente de Cuba não são suficientes para afastar a má-impressão criada pelos boatos e insinuações sobre a vida e a obra de Yoani Sanchez. Recentemente, o Global Voices Online públicou um artigo sobre a blogueira que acabou se tornando tema de um debate na CNN. O nosso "estimado" Frei Betto, também já deu o seu pitaco através de um artigo intitulado "A blogueira Yoani e suas contradições" (aliás, sobre esse texto, recomendo a leitura do post "Frei Betto, Yoani Sanchéz e o Copyright", de Leandro Beguoci). Podemos dizer que o número de pessoas que contestam Yoani, aumenta na mesma medida que a sua popularidade (a blogueira foi considerada pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo e recebeu prêmios como o Ortega y Gasset de jornalismo e o The BOBs de melhor blog de 2008).

Não me surpreende que seja assim. Jornalistas, de um modo geral, raramente entendem a situação política de Cuba e mesmo os repórteres mais experimentados têm dificuldade para explicar o regime totalitário criado pelos Castro.

Para desfazer a má-impressão que paira sobre o nome de Yoani, não há nada mais apropriado do que conhecer o seu trabalho. Seja por meio de um vídeo como o que foi produzido pela trupe do Garapa.org; seja pela entrevista realizada por André Deak ou mesmo de um programa de TV como o "Milênio", da Globonews. Também recomendo a leitura do livro "De Cuba Com Carinho", publicado pela Editora Contexto.

Quero deixar claro que não tenho a intenção de beatificar a blogueira, mas sim de instigar os leitores desse blog a refletir se as questões apontadas por ela são ou não pertinentes. É evidente que aqueles que sofrem nas masmorras, que lutam para derrubar o Muro del Malecón, são tão importantes quanto ela. Mas devemos dar um destaque especial aquela que é, provavelmente, a voz mais importante do povo cubano nos dias de hoje. Disponham-se a ler os seus textos e nunca, sob hipótese nenhuma, emitam julgamentos apressados e repletos de certezas inexpugnáveis.
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Um comentário:

  1. Já dizia Nelson Rodrigues "toda unanimidade é burra." E Voltaire foi além disso : "Quando uma discussão se alonga nenhuma das partes tem razão". Já escrevi sobre determinadas "certezas" e "Verdades" e esse posicionamento fixo e duro é latente na humanidade, não só nos pensadores, tudo é disputa para o homem.

    Quanto ao blog da Yoani, já conhecia, muito interessante, recomendo a entrevista com o Obama. Mas tenho que fazer um adendo, me irrita um pouco (muito) essa posição cubana conteporânea de que os EUA são um paraíso. Cuba não pode ser uma das 7 maravilhas para viver, mas tudo que cuba passou e passa tem uma forte parcela de culpa dos americanos e parece que isso foi esquecido pelos cubanos mais jovens e pelos que chingam Fidel e cia pelo resto do mundo.

    Dois lados, duas certezas, duas verdades e na verdade todos tem e não tem razão.

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