3 de abril de 2010

Quando o estado flerta com a censura

Esse é um texto longo e provavelmente muitos de você o acharão cansativo. Estou ciente que a Internet exige um formato mais dinâmico e sucinto, mas o assunto é polêmico e acho que uma exposição mais curta acabaria empobrecendo o debate.

Em 30 de abril de 2009, após o julgamento que aboliu a Lei de Imprensa de 1967, o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, redigiu um acórdão que parecia anunciar uma nova era de liberdade. Num documento de 334 páginas, o ministro fez afirmações firmes e categóricas: "Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do poder judiciário". Em outra passagem, escreveu: "A crítica jornalística não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada”. Em mais um trecho, acrescentou: “Não cabe ao Estado, por qualquer de seus órgãos, definir previamente o que pode e o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas".


Oito meses depois, em 10 de dezembro de 2009, o STF examinou um recurso jurídico do jornal Estadão contra uma sentença que proibia a publicação de reportagens com escutas obtidas na Operação Boi Barrica, que investigou as empresas dirigidas pelo empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney. O argumento do jornal era simples e lógico: se não existe "liberdade pela metade", por que a censura prévia? Infelizmente, o argumento não convenceu os outros ministros, que pela primeira vez na história daquela corte, votaram contra um acórdão.

Como o próprio nome diz, o acórdão é uma síntese, ou acordo, que reflete a opinião de todos os juízes do STF. Não é um serviço fácil de se fazer e, muitas vezes, os próprios magistrados se colocam em desacordo quando lêem o texto final. Para resolver qualquer discordância, há um recurso, chamado embargo, que permite aos juízes manifestarem suas discordâncias e impedirem a publicação do documento. Como nenhum dos ministros utilizou esse recurso, ficou subentendido que estavam todos de acordo. Por isso, a votação que manteve a censura contra o Estadão causou tamanha estranheza.

Casos como esse, em que o estado flerta abertamente com a censura, não são raros no Brasil. Já se tornou comum ver o presidente da república tecendo críticas a imprensa e demonstrando interesse em controlá-la. Naturalmente, Lula não é o primeiro presidente a se queixar da cobertura jornalística do seu governo. O que se falava mal da mídia no Palácio do Planalto durante o governo FHC e o que se fala no Palácio dos Bandeirantes de José Serra, por exemplo, ocuparia páginas inteiras de um periódico. Governos de todas as cores e orientações, afirmam que os jornalistas ignoram, com uma freqüência muito maior do que o desejável, o que se faz de bom em suas gestões e destacam o que vai mal porque dá mais publicidade.

Há, no entanto, uma diferença - não de grau, mas de natureza - entre os protestos dos que se julgam injustiçados pelos meios de comunicação e os sistemáticos ataques de Lula à imprensa. Governadores e prefeitos, ministros e secretários, podem deplorar a suposta miopia do noticiário, mas reconhecem o papel da imprensa na manutenção do estado democrático de direito e asseguram que a liberdade de expressão é uma premissa inerente aos regimes democráticos. Lula não parece compreender muito bem isso, pois desde o escândalo do mensalão, em 2005, ele está empenhado em destruir a credibilidade dos órgãos de informação que apontam os dissabores do seu governo.

No passado, ele dizia que não teria se tornado o que se tornou, a ponto de disputar a Presidência da República se não fosse a liberdade de imprensa no Brasil. Afinal, foi ela quem de fato propeliu o seu nome, cobrindo passo a passo a sua trajetória, fossem quais fossem os julgamentos que pudesse fazer a seu respeito. Isso não mudou, mas o que Lula hoje entende por liberdade de imprensa não passa de uma caricatura grotesca. Recentemente, ele afirmou que "é triste quando as pessoas têm o direito de escrever as coisas certas e escrevem as coisas erradas". Ora, nas democracias, as pessoas têm o direito de escrever e ponto. Quem deve definir o que é certo e o que é errado, o que é ético e o que é antiético, o que é de boa e o que é de má qualidade, são os cidadãos. Mas o presidente não pensa assim! Para ele, o certo seria a imprensa dizer que o PAC é uma maravilha e o errado, informar que apenas 11% de suas obras foram concluídas e 54% sequer saíram do papel. Certo seria a imprensa olhar para o outro lado enquanto ele promove, com assombroso despudor, a candidatura da ex-ministra Dilma Rousseff e errado seria chamar de campanha eleitoral antecipada a campanha eleitoral antecipada.

Os historiadores certamente terão muito a dizer sobre a contribuição do governo Lula para o prosseguimento das transformações pelas quais o país começou a passar nos anos 1990. Mas também haverão de registrar que Lula foi o presidente que mais se indispôs com a imprensa livre. Haja vista que ele foi o governante que, com pouco mais de um ano no poder, tentou expulsar do país o correspondente do New York Times por ter escrito uma reportagem (de duvidosa qualidade) sobre o seu gosto pela bebida. Na época, o então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, o alertou de que a expulsão seria inconstitucional, pois o jornalista era casado com uma brasileira. Em resposta, ouviu de Lula um sonoro: "F-se a Constituição".

Pois bem! A Constituição de 1988, que Lula mandou se fod..., consolidou a democracia e estabeleceu os parâmetros para uma convivência justa e harmoniosa entre o estado de direito e as liberdades civis. Contudo, 25 anos após o fim do regime militar, sua aplicação ainda é motivo de controvérsia para muitos governantes e juristas. Estão aí a Confecom e o Decreto Nacional de Direitos Humanos, para provar que a tentação de controlar a imprensa continua viva. Felizmente, a história da democracia comprova que por piores que sejam os erros cometidos pelos jornalistas, restringir a sua liberdade de investigar e publicar aquilo que descobrirem, é um erro ainda maior.

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