12 de abril de 2010

A liberdade como um valor

Recentemente os organizadores da Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, anunciaram que o escritor indiano Salman Rushdie, marcará presença no evento com o romance Luka e o Fogo da Vida. Está é a segunda vez que ele participa da Flip (a primeira foi em 2003, quando esteve no Brasil em companhia da sua namorada, Padma Lakshimi, para promover o romance Fúria). Rushdie se tornou um autor consagrado quando venceu o Prêmio Booker, em 1981, com a obra Os Filhos da Meia-Noite, mas só ficou conhecido em nosso país após a publicação de Versículos Satânicos, em 1981.

O livro conta a história de dois indianos, de religião muçulmana, que sobrevivem a um atenta a bomba em um avião, perpetrado por separatistas sikh
. Após a queda da aeronave, na Inglaterra, um deles (Saladim Chamcha), desenvolve chifres, cascos e um rabo. O outro, Gibreel Farishta, adquire um halo e passa a sonhar com o dia em que conhecerá o profeta Mahound (termo pejorativo que designa o profeta Maomé).

A obra causou um enorme estupor entre os muçulmanos, pois foi considerada ofensiva. A fúria do mundo islâmico foi tão grande que em 14 de fevereiro de 1989, o Aiatolá Ruhollah Khomeini, lider supremo do Irã, publicou uma
fatwa ordenando a execução de Rushdie por "blasfemar contra o Islã":
"Eu informo o orgulhoso povo muçulmano do mundo inteiro que o autor do livro Os Versículos Satânicos, que é contrário ao Islã, ao Profeta e ao Corão, assim como todos os implicados em sua publicação e que conhecem seu conteúdo são condenados à morte. (...) Apelo a todo muçulmano zeloso a executá-los rapidamente, onde quer que eles estejam. (...) Todo aquele que for morto nessa empreitada será considerado mártir".
É isso mesmo! Do alto dos minaretes de Teerã, Khomeiny proferiu a sentença e ordenou a execução da pena do escritor e de todos os implicados na publicação do livro, onde quer que estivessem. Essa condenção fez com que a década seguinte se convertesse num verdadeiro martírio para o romancista, que se viu obrigado a viver escondido, sob proteção da polícia britânica. Esse fatídico episódio fez com que Rushdie assumisse o papel de porta-voz das liberdades civis e inpirou o autor a escrever dois outros ótimos livros: Haroun e o Mar de Histórias; dois romances infanto-juvenis que foram escritos para explicar ao seu filho porque eles tinham perdido a liberdade de expressão.

Em 1998, depois de muita pressão internacional, o Irã finalmente retirou a condenação e o escritor pode, enfim, levar uma vida normal.
Com o seu primeiro romance pós-fatwa, O Último Suspiro do Mouro, Rushdie foi vencedor do Prémio Whitebread. O personagem principal da trama, Moraes Zogoiby, é uma especie de alter ego do autor que descreve a história de sua família e da luta para sobreviver à sentença de morte, determinada por Vasco de Miranda, seu algoz.
"Perdi a conta dos dias que transcorreram desde que fugi dos horrores da fortaleza louca de Vasco Miranda, na aldeia de Benengeli, nas montanhas da Andaluzia; fugi da morte na escuridão da noite, deixando uma mensagem pregada na porta".
Infelizmente, Rushdie não foi o único a sofrer com a perseguição do Islã. A escritora somali, Ayaan Hirsi Ali, também sofreu os horrores de uma perseguição após escrever Infiel, um livro onde ela critica a perspectiva islâmica das mulheres. O jornal dinamarques Jyllands-Posten, também sofreu com a irá dos muçulmanos após publicar uma série de caricaturas do profeta Maomé. Como explicar uma reação como essa? É óbvio que a apatia do ocidente diante da desídia de Rushdie estimulou a reação desmesurada dos Islã. Se as democracias ocidentais tivéssem cortado relações com o regime dos aiatolás naqueles dias, provavelmente não estaríamos às voltas com os arroubos totalitários das teocracias islâmicas.

Para se ter uma ideia do quão desarazoada é a reação do mundo islâmico, imaginem o que aconteceria se o mundo ocidental começasse a agir como eles? Escritores como Voltaire, Diderot, Guerra Junqueiro e Nietzsche, teriam tido seus dias contados e talvez jamais tivessem chegado a ser quem foram. De fato, grande parte dos nossos intelectuais e pensadores criticaram abertamente as religiões e seus mais diversos deuses. Imaginem o que aconteceria se o mundo cristão resolvesse se entregar a esse frenesi destruidor cada vez que recebesse uma dessas críticas? Matin Scorsese teria sido condenado a morte por ter dirigido A Última Tentação de Cristo e Godard... Bem, não quero nem imaginar o que teria sido de Godard com seu infâme
Je Vous Saloe Marie (Eu Vos Saudo, Maria). Felizmente, nós aprendemos com os erros do passado e aposentamos de uma vez por todas livros como o Maleus Maleficarum e o Compendium Inquisitorum.

O jornalista e crítico da sociedade americana, H. L. Mencken,
costumava dizer que "mesmo o homem mais superticioso tem direitos inalienáveis. Ele tem o direito de defender as suas imbecilidades tanto quanto quiser, mas certamente não tem o direito de exigir que outros - que não partilham da sua fé - as tratem como sagradas". E foi nesse espiríto que a Corte Européia de Direitos do Homem públicou o acórdão de Handyside:
"A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática".
Espinosa, outro grande pensador ocidental, costumava dizer que a democracia é a única forma de organização política em que os cidadãos podem viver intensa e plenamente sua liberdade. Ao visar à conservação de sua própria existência, os homens se fortalecem na mesma medida em que são livres. O cultivo do medo, ao contrário, impede a experiência da liberdade e o vigor democrático. As lições de Espinosa são antigas e já deveriam ter sido assimiladas por toda a civilização ocidental. No etanto, mesmo aqui, ainda existem aqueles que resistem aos avanços democráticos. Não se iludam! Os bárbaros ainda rondam os nossos quintais. São indivíduos, entidades representativas e partidos políticos, que lutam para impor uma ditadura do partido único aos moldes de 1984. Gente que
aspira à unanimidade e pretende tolher a nossa liberdade, porque não é capaz de conviver com as críticas. Não podemos condescender com algo assim, nem hoje e nem nunca. Do contrário, estaremos escarnecendo da luta de todos aqueles que sofreram a dor de ter um texto modificado, uma ideia condenada, uma foto censurada e uma vida roubada.
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