1 de julho de 2010

O "neogolpismo" e sua face tupiniquim

A América Latina tem sido um laboratório de fórmulas de aparência democrática criadas com o único e verdadeiro intuito de suprimir a democracia. O principal centro de elaboração destas fórmulas é a Venezuela, do caudilho Hugo Chavez. Uma vez eleito, o golpista frustrado de 1992, aplicou um método populista vulgarmente chamado pelos seus adeptos de "democracia direta". O método consiste na convocação de um plebiscito para examinar a proposta de convocação de uma nova constituinte. O ardil está em aplicar o método logo após a vitória eleitoral, maneira infalível de garantir sem maiores riscos a criação da Câmara para rever a Constituição e, posteriormente, assumir o seu controle. O modelo já foi exportado para a Bolívia e o Equador, onde Evo Moralles e Rafael Correa plasmaram constituições para garantir a sua permanência por um período indeterminado.

Diferente do golpe de estado convencional, preconcebido por um grupo de militares que usurpam o poder por meio da força, o "neogolpismo bolivariano" se utiliza dos dispositivos democráticos para atacar a própria democracia. Esse novo tipo de golpe é encabeçado por civis e conta com o apoio tácito (passivo) ou a cumplicidade explícita (ativa) das Forças Armadas. Seu objetivo é violar a constituição do Estado com uma violência menos ostensiva. Para isso, os novos golpistas tentam preservar um semblante institucional mínimo (como o Congresso em funcionamento e/ou com a Suprema Corte temporariamente intacta), para dar ao povo a falsa ideia de que vivem em uma democracia. Ao contrário dos golpes que ocorreram nas décadas de 60 e 70, nem sempre há uma grande potência (por exemplo, Estados Unidos) a par dos desígnios dos golpistas.

Na América Latina, existe uma espécie de "escola" do neogolpismo. Ano após ano, aqueles que atentam contra a democracia vêm se aprimorando e tornando os métodos de atuação mais sofisticados e - por que não? - menos questionáveis. Por exemplo, os golpes que ocorreram no Equador - contra Abdalá Bucaram em 1997 e Jamil Mahuad em 2000 – eram tão efetivos e sofisticados que acabaram sendo tolerados e aceitos na região. Não existiu uma virulência desproporcional e as sucessões presidenciais se encarregaram de lhes dar aspectos de quase constitucionalidade. Washington e Brasília (especialmente no caso de Mahuad) não questionaram seriamente o que ocorreu, e até hoje o Grupo do Rio e a Organização dos Estados Americanos discutem o assunto.

Tempos depois, em 2002, houve uma tentativa desastrada de depor Hugo Chávez na Venezuela. Países como Argentina, Brasil e Chile reagiram imediatamente, repudiando o ocorrido e qualificando-o como um golpe de Estado. Mas os americanos, cientes do mau que Hugo Chávez representava para as liberdades individuais do povo venezuelano, decidiram seguir por outro caminho. Eles não apenas se recusaram a emitir uma nota de agravo ao golpe como também o justificaram (o mesmo foi feito pela Espanha, Colômbia e o pelo Fundo Monetário Internacional). Dois anos mais tarde, em 2004, os americanos recorreram novamente ao conceito de golpe benévolo e promoveram a saída forçada de Jean-Bertrand Aristide, no Haiti. Na ocasião, Washington sustentou que foi Aristide quem provocou, com o seu comportamento antidemocrático, a crise institucional que levou à sua remoção do governo. De fato, todos esses homens foram destituídos do cargo de presidente por atentar - direta ou indiretamente - contra a democracia.

Agora, quem insiste neste assunto é o PT, por meio da sua candidata, Dilma Rousseff. Em uma entrevista recente, ela falou sobre a necessidade de uma reforma constitucional, mas não especificou o que, exatamente, mudaria em nossa Constituição. Até aí, nenhuma surpresa! Consta no programa do partido a nacionalização do kit chavista que prega, entre outras coisas, uma democracia sem alternância de poder, sem liberdades republicanas e sem a possibilidade de convocar uma nova constituinte para desfazer os arranjos da anterior. É, em suma, um golpe branco. Desferido por meio das instituições democráticas como um tapa com luva de pelica. Já imaginaram o risco que o nosso país correrá caso regras implementadas em áreas essenciais da política possam sem alteradas em votações por maioria simples, numa Câmara dominada pelo PT e seus aliados fisiológicos? Seria um desastre!

Na prática, os plebiscitos marcam o retorno ao cesarismo, um regime político onde o povo delega vultosos poderes a uma só personalidade. Querem um exemplo? Vejam o que aconteceu em Portugal, com Salazar e na Alemanha, com Hitler. Dilma sabe disso, mas mesmo assim reafirma o credo petista a favor de propostas como o financiamento público das campanhas, da votação em lista e da aplicação de plebiscitos. São ideias muito polêmicas, sem dúvida! A estatização completa dos gastos em campanha, por exemplo, não eliminaria o risco de caixa dois e o voto em lista, não individualizado, acabaria concedendo poder absoluto as cúpulas partidárias (como no modelo soviético). Já a aplicação de plebiscitos... Dispensa comentários! A controvérsia em torno dessas bandeiras desaconselha a convocação de uma constituinte, sobretudo após uma vitória eleitoral que poderia "contaminar" o trabalho dos nossos legisladores.

Além disso, não há garantias que essa constituinte não trará mais prejuízos do que benefícios para a população. Câmaras revisoras são convocadas em circunstâncias muito específicas, como guerras e mudanças de regime. Usá-las para tratar de temas que poderia ser facilmente apreciadas pelos nossos legisladores é uma ofensa ao Estado Democrático de Direito, pois põem em xeque o equilíbrio entre os poderes. Mas os petistas não estão nem aí para isso! Afirmam que a discussão só não foi levada a termo pelo Congresso porque não há interesse entre os senadores. Ora, se os governistas não são capazes de arregimentar a maioria dos nossos congressistas é porque não existe consenso na sociedade em torno desta revisão. Vocês podem apostar que no dia em que houver um consenso na sociedade em torno da revisão da nossa Constituição Federal, não faltarão deputados e senadores empenhados em levantar essa bandeira. Afinal, é o eleitor que garante a permanência deles na casa e, por conseguinte, o leite dos seus filhos.

O PT sabe que existem aperfeiçoamentos na legislação eleitoral que prescindem de mudanças constitucionais. Mas estes aperfeiçoamentos não tocam em uma questão fundamental para o partido: o limite imposto por lei para que um político possa ser reeleito. Por isso, decidiu contornar a questão com esse papo de que precisamos fazer uma reforma constituinte o quanto antes. Não se enganem, reformas propostas na surdina por um partido ou mesmo por uma entidade representativa, não raro possuem um DNA golpista. O assunto é sério, delicado, e não pode ser esquecido na agenda de debates dos candidatos sobre a sucessão presidencial.

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7 comentários:

  1. Muito bom tópico, Thiago! Eu estava pensando nisso hoje! Captou bem meu pensamento - meus parabéns! Pode-se traçar uma teoria geral dos golpes de Estado a partir do que está sendo praticado nessa parte do Continente. É mais um estudo de caso - mas isso fica para a posteridade.

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  2. Recentemente, a corte suprema da Venezuela derrubou um artigo do Código Civil Venezuelano (mulheres se casam aos 14 e homens aos 16). Alegação: discriminação de gênero, por violação do direito à igualdade. A Verdadeira face do argumento: promoção da irresponsabilidade e abolição da família.

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  3. Na Bolívia, a diferença entre jurisdição comum e jurisdição indígena tem mais promovido um verdadeiro samba do crioulo doido. 4 policiais foram mortos por índios, segundo seus costumes de justiça. Em troca da impunidade, eles devolvem os corpos.

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  4. Ridículos tiranos e ditadores fazem parte da história política Sul-americana. São os podres poderes cantados por Caetano. Mas sinceramente acredito que tudo faz parte de um processo que por mais nefasto, culminará na democratização verdadeira do povo. Ao menos o direito de errar e aceitar o povo está tendo, coisa que antes nem existia.

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  5. Rodrigo,

    Regimes democráticos por vezes conseguem se perverter, a ponto de se inviabilizarem. Isso ocorreu na Alemanha de Weimar, país com um governo improvisado e caótico. No Japão, um país feudal que até hoje permanece aferrado a características próprias dos regimes feudais. Na Itália, um país fragmentado e sem uma liderança política capaz de conduzir um processo de reforma e de modernização das instituições públicas. E agora na América Latina, onde sociedades desiguais produzem facilmente líderes populistas que prometem soluções milagre aos pobres e acabam contribuindo para a deterioração do funcionamento da democracia (isso quando não são eles mesmos a sabotá-la diretamente). O Brasil não é imune a essa receita!

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  6. E qual a solução para isso que não seja o tempo? Tem alguma?

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  7. Rodrigo,

    Existem várias formas de evitar isso, mas nenhuma é tão eficiente quando a consolidação do Estado Democrático de Direito e o reconhecimento de que a democrácia e seus princípios - tais como a alternância de poder e o respeito incondicional as leis - são invioláveis.

    É simples! Os sulamericanos precisam abandonar a tese de que um Estado indutor, centralizador, responsável pelo crescimento do país, é a solução para todos os nossos problemas e apostar na receita que levou os países desenvolvidos a serem o que eles são: resposabilidade fiscal, geração de riqueza, redução dos gastos públicos (bem como da dívida pública), diminuição da concentração de renda (mais tarde eu vou falar sobre isso), respeito a propriedade privada, consagração da liberdade de expressão e etc.

    Repare que essa receita não faz parte de nenhum ideário político ou ideológico. Ela é tão simples que pode ser implementada por qualquer governo sem que acarrete prejuizos para a nação. Na verdade, ela só acarreta prejuizos para aqueles que pretendem se perpetuar no poder indefinidamente, como Hugo Chavez, por exemplo.

    Querem fazer reforma mesmo? Moralizar? Então esqueçam fórmulas mágicas como voto distrital, voto distrital misto, voto em lista, financiamento público de campanha e apostem em coisas mais simples e urgentes como o horário eleitoral na televisão, por exemplo.

    Hoje, ele é o princípio que norteia as relações políticas em nosso país. É ele quem determina as coligações Brasil afora. O PT, por exemplo, engoliu brasa do PMDB país afora porque não pode ficar sem seus preciosos minutos da televisão. O PSDB recuou de uma primeira escolha a vice-presidente porque não podia abrir mão do tempo do DEM… E partidinhos e partidecos se transformaram, na prática, em verdadeiros mercadores do tempo na TV.

    O tempo na TV também deu relevo à figura do "marqueteiro", que se transformou no grande agente político do país. A ele cabe transformar dois postes, como José Serra e Dilma Rousseff, em verdadeiros Schopenhauers eleitorais.

    O horário político e o horário eleitoral gratuitos — e não pense que se trata de uma instituição universal das democracias — são, hoje em dia, malefícios óbvios, pois distorcem a atividade política e favorecem a corrupção e o clientelismo. Já que é estamos falando em reforma, deixemos de fora as propóstas com DNA golpista e falemos sobre aquilo que relmente interessa: como consolidar e preservar a democrácia.

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