6 de julho de 2010

Democracia - Como garantir que ela não corrompa a si mesma?

Como eu previra, o texto "O neogolpismo e sua face tupiniquim", sucitou as mais diversas reações. Alguns estão de pleno acordo com aquilo que eu escrevi, mas outros possuem ressalvas que mercem ser analisadas com o máximo de atenção. O intuito desse novo texto é dissecar a questão e quem sabe chegar a um consenso sobre o assunto.

Tenho notado em discussões, jornais e até em artigos acadêmicos que está na moda uma distorção do conceito de democracia, segundo a qual democracia seria algo bom em si mesmo; se ela falha, a receita é mais democracia! Mais de que democracia nos estamos falando? Nos últimos anos, essa palavra tem sido usada - como uma frequência nunca antes vista - para legitimar as ditaduras e impor regimes autoritários aos cidadãos. Isso tem acontecido porque nos esquecemos que a articulação entre liberdade e democracia é indireta e deve ser mediada pelo Rule of Law (Império das Leis).

Mas o que isso quer dizer? É simples! A grosso modo, quer dizer que a liberdade antecede toda organização social e somente homens livres podem se reunir e decidir de que forma serão governados - "constituir governos entre eles" - e escolher seus representantes para exercerem esta função. Ao decidirem isto certamente perdem algo da liberdade absoluta que poderiam gozar caso, digamos, resolvessem viver isoladamente e de forma selvagem. Este quantum de liberdade perdida só poderá ser acordado por aqueles que estão em pleno gozo da sua liberdade. Naturalmente, os que devem perder a maior fração da liberdade devem ser aqueles que forem escolhidos para governar. Pois somente assim seremos capazes de garantir que os homens criem os governos, e nunca o contrário.

O problema é que a imensa maioria das pessoas faz o exato oposto disso. É natural, pois somos criados pelos nossos pais, que governam a casa com grandes poderes e provêem tudo que é necessário para a nossa subsitência. Em nossas relações familiares, aprendemos que a liberdade nos é concedida aos poucos e nossa participação nesta aquisição vai aumentando gradualmente até a idade adulta. Como a nossa única referência da sociedade é a família, projetamos os conhecimentos que adquirimos através dela no Estado. Asim, nós não apenas esperamos que ele seja o provedor das nossas necessidades, como também que nos conceda a liberdade necessária para que possamos viver condignamente. Este é o fundamento da democracia para o homem-massa: eleger os dirigentes que distribuirão mais benesses é mais importante do que ser livre e responsável por si mesmo. Lamentável!

Esse conceito deturpado e acrescido de inúmeras excrescências tem pouco ou nada a ver com o ideal democrático. Por essa razão, precisamos depurá-lo para só então compreendê-lo. Nesse processo, o primeiro elemento que devemos subtrair da nossa equação é o termo "democrácia direita". A rigor, a democracia direta nunca existiu. Democracia é a predominância da vontade de uma maioria sobre um minoria e nada além disso. Na Grécia, louvada por muitos como a mãe da democracia, somente os homens livres e adultos votavam, as mulheres e os escravos eram excluídos da Ágora. O "povo" grego era representado por um minoria contemplada pelo governo que não fazia outra coisa senão refletir os desejos do próprio governo.

Como se vê, a única diferença entre o sistema político adotado pelos gregos e as ditaduras modernas era a aceitação. O primeiro era tido como legítimo e ordinário pelos cidadãos e o segundo era - e ainda é - imposto a revelia das leis. Percebam que as diferenças tangem apenas a aplicação do sistema, o seu modus operandi é muito parecido e termina por privar o povo da liberdade e do império das leis de que lhes falei. Mas então qual é a melhor forma de governo? Sem dúvida é aquela em que as pessoas consentem em ser governadas. Consentir em ser governado não é a mesma coisa que se submeter a vontade da maioria, em absoluto. Na verdade, o consentimento dos governados é uma situação na qual o povo se autogoverna nas suas comunidades, na religião e nas instituições sociais, e nas quais o governo só pode entrar mediante o consentimento do povo. Existe entre o povo e o governo limitado um vasto espaço social no qual homens e mulheres, nas suas capacidades individuais, podem exercer a liberdade do autogoverno. Simples, não acham?

Naturalmente, isso por si só não garantirá a segurança da democracia, da liberdade e da inviolabilidade das leis. Por isso, a sociedade civil organizada criou o conceito de checks and balances (um conjunto de limitações e inspeções dentro do sistema governamental cuja função é manter o balanceamento entre as diversas facções e impedir que uma delas acumule poder em excesso). Algo parecido com o Poder Moderador instituídos pela Constituição Brasileira de 1824 e pela Carta Constitucional portuguesa de 1826. A fórmula é simples, aliás simplíssima. Ao invés de três poderes, haveriam quatro: Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário e o Poder Moderador. Este último seria responsável pelo equilíbrio entre os demais e, em última análise, poderia exercer uma força coativa sobre os outros.

Essa "precaução extra" é o remédio para as doenças mais comuns nos Governos Republicanos: a tirania democrática (abuso pela maioria dos direitos da minoria) e a incompetência democrática (tendência inerente às democracias de não funcionarem com eficiência). Mas, este remédio tem que ser aplicado com parcimônia, do contrário os seus efeitos podem se tornar nefastos. Foi exatamente por isso que criamos a separação dos poderes. Através dela, garantimos que o remédio seja administrado de acordo com as nossas necessidades e impedimos que uma mesma pessoa faça parte de mais de um Poder, ou que um dos Poderes assuma a função do outro. Em tese é maravilho, mas na prática isso nunca funionou muito bem no Brasil. Aqui, o presidente se imiscui nos assuntos do Poder Legislativo por intermédio das Medidas Provisórias - que se parecem muito com os Decretos Lei do Estado Novo - e passa assim, a fazer parte - ainda que de maneira informal - de mais de um Poder.

Para evitar que isso continue a acontecer, precisamos reservar os poderes não delegados ao Estado pela Constituição, nem por ela proibidos, ao povo. Isso já é feito, de maneira exemplar, na Suíça. Lá o povo tem a última palavra sobre questões essenciais. Pelo menos quatro vezes por ano os cidadãos suíços recebem um envelope da Confederação Suíça do seu Cantão ou da sua Comuna e são convocados a opinar sobre assuntos específicos. Ao contrário das democracias representativas puras, os eleitores suíços podem se manifestar amiúde, se constituindo assim na instância política suprema, e não apenas episódica. A grande maioria das votações se faz de forma secreta utilizando urnas, ou enviando envelopes fechados pelo correio. Em dois cantões ainda se utiliza o sistema de "Assembléia Popular" (Landsgemeinde), onde os cidadãos votam em praça pública, erguendo suas mãos.

E os referendos? Os suíços também apostam nos referendos, mas diferente do que acontece na América do Sul, lá o governo não detêm o direito de convocá-los. Somente o povo tem o direito de propor a realização de consultas sobre questões essenciais e se porventura ficar insatisfeito com o seu resultado, pode reunir reunir 50.000 assinaturas (cerca de 0,67% da população), e ter o direito de convocar um novo referendo que poderá revogar a lei aprovada pelo primeiro. É fácil compreender o porquê disso. Os suíços aprenderam - há mais tempo do que nós - que nos países em que as instituições democráticas não são sólidas, ou são instáveis, o chefe do Poder Executivo pode usar as consultas populares para fins partidários, ideológicos, autoritários ou auto-legitimadores. É tudo muito simples; muito elementar.

Quando os poderes do governo nacional se resumem aqueles que foram delegados a ele pelo povo, através da Constituição, asseguramos a impossibilidade dos tiranos e ditadores fazerem este tipo de coisa. Além disso, no espaço deixado por um limitado governo central o povo pode se auto-regular, de acordo com seus valores morais e sociais, e apelar para as instituições políticas locais para obter auxílio. Note-se que a forma de governo - monarquia ou república - não tem tanta importância assim. Do mesmo modo, não faz diferença se a democracia é direta ou representativa, se o país é capitalista ou socialista. A raison d'être dos procedimentos democráticos escolhidos como os melhores - ou menos ruins - é defender a liberdade individual e o direito das minorias. Reparem que isso é bem mais do que apenas votar e ser votado! Isso é cuidar para que a democracia tenha os meios e modos constitucionais necessários para impedir que seus instrumentos sejam usados, perversamente, para fomentar a democracia delegativa - que é seu exato oposto.

Quando ignoramos isto, a democracia se tranforma na herdeira direta da monarquia absolutista. Ou pior, pois ao menos naquela havia a possibilidade do sistema de governo avançar para a monarquia constitucional ou para a república. Nos países onde as consultas populares foram usadas para legitimar a vontade dos seus governantes, nem mesmo isso há. Vejam o exemplo do Venezuela e do Equador. Nesses dois países, os governantes usaram as suas respectivas eleições populares como um subterfúgio para cometer toda sorte de arbitrariedades contra o Estado Democrático de Direito. É como se o voto tivésse conferido a eles poderes imperiais. Ao invés dos antigos "Eleitos" por direito de sangue, os "Eleitos" por direito de voto, que constituem a casta dos cidadãos de primeira classe; cabe aos eleitores se contentar com a segunda classe, aos quais não se deve nenhuma obrigação, apenas o pagamento de benesses para anestesia. Por isto, a democracia tal como é entendida pela modernidade, é a democracia adjetivada de social, na realidade "socialista", um eufemismo para evitar o reconhecimento da tirania comunista, que é de que se trata. Há uma frase de Chesterton que ilustra muito bem isso: "Os republicanos tinham um horror enorme à palavra 'rei'. Como conseqüência, inventaram e nos impuseram a palavra 'imperador'".

Ao contrário do que acontecia no passado, hoje os negros, mulheres e homossexuais podem exercer o seu direito democrático livremente, mas ao contrário do que muitos pensam, isso não representou um avanço. Digo isso porque se criou uma nova classe de excluidos: os oposicionistas, que perderam vez e voz nessa relação espúria com o Estado. Nos casos menos graves, eles foram excluidos das relações políticas e nos mais graves... Foram excluidos até das relações públicas em nome das supostas "boas intenções". Nesses países, democracia passou a ser o sistema de governo em que eles mandam no povo e ditadura quando o povo escolhe deliberamente mandar neles. Percebem a inversão?

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Um comentário:

  1. Veio bem a calhar esta reflexão. Aliás, como disse uma vez em um comentário, atualmente a ciência política está mais preocupada com estatísticas e com os resultados nas urnas, sempre imprevisíveis, e tentam construir sua ciência em bases instáveis e nem sempre honestas. A base da ciência política é a sociedade enquanto coleção.

    Em meu artigo em que aponto a necessidade de estudarmos nacionidade, nós estaremos dando dimensão mais exata ao estudo da ciência de governo, como forma de gestão da coisa pública que pertence a população de modo difuso (demarquia). É mais do que necessário aplicarmos o individualismo metodólgico no estudo da política (os economistas da Public Choice já estão fazendo isso.

    Sobre a Constituição de 1824 e o Poder Moderador, recomendo aos leitores deste blog o livro Da Natureza e Limites do Poder Moderador, de modo a aprofundarmos a discussão que tanto o Thiago quanto eu estamos aqui a fomentar neste blog.

    Segue o endereço (para ver o livro)

    http://scr.bi/afuw6N

    (para o download do livro):

    http://bit.ly/bdVPFc

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