26 de abril de 2010

Quando o novo é cada vez mais velho

Existem momentos na história brasileira que jamais deveria deixar de ser ser analisados. São lacunas em nossa visão-de-mundo que ainda não percebemos e, quando isso acontecer, tenho a impressão de que será tarde demais. Para muitos, nossa história pára em 1964, quiçá em 1968. Desta data em diante não sabemos de mais nada; e conta-se nos dedos quantos estudiosos resolveram fazer uma (boa) análise do período dos nossos últimos vinte anos – no caso, de 1989 até o presente momento.

A literatura pode suprir esta lacuna – não por ser um reflexo de anseios sociais, como supõem os acadêmicos calcados em seu padrão marxista, mas sim por ser a radiografia de crises muito mais profundas, crises que realmente importam ao indivíduo, crises que atingem as nossas perturbações mais sérias.

A tristeza é que, aparentemente, nem sequer tivemos essa literatura. Durante os últimos vinte anos, ficamos atrasados em relação a tudo o que importa no mundo das letras. Enquanto a França apresentava ao mundo um Jonathan Littell, com seu As Benevolentes, o consumado exemplo do escritor de talento globetrotter, nós resolvemos criar a Geração 90 e embarcar na onda de que escrever sobre favelados, prostitutas, jovens que escrevem em blogues, era tudo o que a literatura deveria ser. Enquanto Portugal apresentava ao mundo nomes como Antonio Lobo Antunes e José Cardoso Pires, nós alçávamos José Saramago as alturas. Da América Latina é melhor nem comentar; colocamos as inquietações de um Vargas Llosa à serviço de um Garcia Márquez e sequer nos preocupamos em saber o que acontece na Argentina, no Chile e outros países que consideramos como vizinhos. Enquanto a Itália tinha um Claudio Magris, nós nos encantávamos com Miltom Hatoum; enquanto os EUA têm um Thomas Pynchon, um Don DeLillo, um David Foster Wallace, um Russell Banks, preferimos paparicar Chico Buarque. Aliás, esse texto é sobre ele e seu mais recente livro, Leite Derramado.

O livro não é nenhuma obra-prima. É um texto mediano. Torna-se um acontecimento cultural no país simplesmente por ter sido escrito por Chico Buarque, que é praticamente uma unanimidade nos meios acadêmicos. Meios onde impera um corporativismo desbragado. Vale a pena, portanto, comentar não só o livro como também as críticas que lhe saíram na imprensa.

Leite Derramado é um dos poucos livros que se presta a inglória tarefa de contar uma história relendo o passado (da década de 60 até os nossos dias). Digo "inglória", porque nas últimas décadas a literatura nacional foi reduzida a frangalhos e Leite Derramado não conseguiu ser a exceção. A falta de humor dos nossos escritores chega às raias do insuportável. Não me refiro aquele tipo de humor que provoca o riso solto, istriônico. Mas sim aquele que nos faz pensar a partir de um certo absurdo da condição humana. Não precisa nem rir; basta ver as coisas pelo avesso. Infelizmente, como diria Paulo Francis, "a ironia é uma especia de segredo na pátria amada" e o último livro de Chico Buarque corroborou essa sentença.

Leite Derramado pretende ou pretendia, não sei, traçar um panorama da história social do Brasil a partir do discurso de um decadente representante das nossas elites que, centenário e moribundo, teria ditado as suas memórias para uma enfermeira do hospital onde se encontrava. O personagem narrador é uma especie de caricatura do burguês aristocrata brasileiro. Pelos cacoetes pretensiosos e autoritários do seu discurso, vão se revelando as mazelas da elite [sic] e das classes dominadas, exploradas.

A passagem que melhor descreve essa situação é a que narra o desejo que o protagonista, Eulálio d'Assumpção, sente por Balbino, "um preto meio roliço", filho de um criado da família e que foi seu amigo de infância. Sobre ele, relata Eulálio, no capítulo 4:

"Durante um período, para você ter uma idéia, encasquetei que precisava enrabar o Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto, necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino. [...] Só me faltava ousadia para a abordagem decisiva, e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de primícias, ponderações tão acima do seu entendimento, que ele já cederia sem delongas".

Ora, a imagem do rico querendo literalmente – desculpem – foder o pobre, fala por si só. Felizmente, o livro não chegou a realizar o seu objetivo e algumas referências se perderam para sempre na história literária do nosso Brasil. Vejam, por exemplo, o nome do protagonista, a que o apóstrofe e o pê mudo devem atribuir distinção, antiguidade e nobreza: Eulálio d'Assumpção. Trata-se de um estereótipo precoceituoso da elite da qual o próprio Chico faz parte. É uma caricatura extraída dos velhos manuais de historiografia e sociologia marxista, escritos pelo pai do autor, por Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Nada acrescenta a elas, além da linguagem da ficção, mas se trata de uma ficção que não ilumina nenhum aspecto da realidade.

Não estou querendo dizer que as nossas elites não merecem críticas e caricaturas. Merecem sim, sem dúvida nenhuma! Mas que sejam críticas e caricaturas capazes de lançar alguma luz sobre a alma desse país. É possível ser marxista e fazer uma literatura analítica e penetrante, sem recorrer a clichês sociológicos. Estão aí São Bernardo e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, como evidência disso.

Além da falta de brilho, há uma óbvia e rídicula pretensão machadiana no texto de Chico Buarque. Chico foi tolo e presunçoso ao se pretender um Machado de Assis, pois em matéria de estilo, sua linguagem não consegue atingir a graça e a elegância do autor de Dom Casmurro. E se Matilde, a amada do narrador de Leite Derramado, tem um quê de Capitu e sua relação com Eulálio é análoga à daquela com Bentinho, não há nisso mais do que uma justa homenagem ao bruxo do Cosme Velho. No mais, Chico, por causa de sua sociologia barata, está mais para nossos naturalistas menores, como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro, pois assim como eles é esquemático e determinista.

Agora, vale a pena rever algumas críticas feitas na ocasião do lançamento do livro.

Comecemos por Roberto Schwarz. O autor de As idéias fora do lugar, tem, como se sabe, as idéias fora do tempo... É um frankfurtiano ortodoxo, que muito se orgulha dessa condição. Nem por isso deixa de ser um erudito e, portanto, é impossível que leve o romance de Chico a sério. Quando diz, logo no início de sua resenha, que Leite derramado é "divertido", faz do seu julgamento um valor definitivo.

Suas últimas palavras qualificam o romance como uma "soberba lufada de ar fresco" no panorama literário brasileiro de hoje. Ora, trata-se de um meio elogio, no caso um discípulo de Benjamin e Adorno, como Schwarz, para quem a obra de arte deve ser muito mais do que mera diversão. E um meio elogio que só é feito por corporativismo esquerdista, pois o deleite do crítico está no fato de os Assumpção irem, como ele diz, "cumprindo o seu papel de classe dominante, europeizadíssimos e fazendo tudo fora da lei".

Quanto às críticas de Augusto Massi e de Samuel Titan Jr., ambos da USP, diga-se que elas não têm o mínimo compromisso de ajudar o leitor aprofundar-se na compreensão do romance, compromisso sem o qual a crítica literária não serve para nada. Os dois fazem elucubrações vagamente elogiosas que mais visam a exibir a sensibilidade intelectual e a capacidade de raciocínio deles mesmos do que a abordar seu objeto de análise.

Massi ainda tem o desplante de terminar seu ensaio com um trocadilho alusivo ao título da obra do pai do autor: "Ao revirar pelo avesso ideologias entranhadas fundamente em nossos hábitos cotidianos, talvez ele [Chico] avance rumo às raízes do Brasil". É uma brincadeirinha cretina que fica no mesmo nível da do redator da Ilustrada, que chamou Chico Buarque de "o bruxo do Leblon", multiplicando por dez a distância que separa este daquele outro bruxo que habitava o bairro do Cosme Velho...

Enfim, das críticas que li, prefiro a de Eduardo Gianetti da Fonseca, que dá conta de fazer uma síntese bem feita do romance e de elogiá-lo com mais economia. Gianetti destaca as "soluções felizes de linguagem espalhadas como dádivas pelo texto". Mas deixa clara a falta "de ao menos um personagem com o qual se possa ter um vínculo de empatia. Os Eulálios senhoriais são calhordas; os Balbinos da estirpe servil [...] e Matilde não tem vida interior". E arremata com precisão: "A sociologia festeja, mas a filosofia rasteja". É isso mesmo! Nas histórias elaboradas dentro da estética marxista, a sociologia festeja e a filosofia rasteja.
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3 comentários:

  1. Um texto bastante contundente. Concordo em grande parte, adoro chico, mas acho que essa unanimidade deve incomodar até a ele.

    Agora:"No mais, Chico, por causa de sua sociologia barata, está mais para nossos naturalistas menores, como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro, pois assim como eles é esquemático e determinista." Vc pegou pesado. Seu pai é um dos maiores nomes da sociologia brasileira e ele entende bem do assunto.

    Esse blog é mais abrangente que o outro e ratifica seu olhar panorâmico sobre tudo. Isso é uma característica sua e vc deve conservá-la.

    Gostei muito dos textos e vou seguir e colocá-lo no meu blog.

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  2. Amigo, mais uma vez devo admirar sua coragem em expor idéias tão polêmicas. Mas confesso que discordo de algumas questões, a que mais grita agora seria a de você colocar Sérgio Buarque no mesmo "saco" que Caio Prado e Florestan Fernandes. E em alguns momentos você até chega a pontuar características marxistas no autor, o que é um erro grave, já que Sérgio Buarque foi um dos fundadores da conhecida "História das Mentalidades" no Brasil, sua obra se preocupa em traçar uma unidade mental na sociedade brasileira, e não dividi-la em classes, motivada por conflitos econômicos. A linha mestra de Sérgio Buarque é o coletivo e seu inconsciente, tanto que sua principais obras são ensaios, embora o autor seja um catedrático.
    Quanto ao livro, ainda não o li, portanto não me sinto habilitado a dar qualquer opinião.
    Mesmo assim, admiro sua coragem e seu fervor.

    F.M.

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  3. Há algum tempo tenho pensado sobre a razão da apatia nacional. Por que o brasileiro não reage contra "tudo que está aí"? Por que ele se submete às humilhações periódicas dos seus representantes? Por que escolheu a apatia como meio de vida? Atrás das respostas para essas perguntas, li e reli a obra de autores como Sergio Buarque, Gilberto Freyre, Merquior, José Osvaldo e Meira Penna. Tive de engolir meia dúzia de marixstas organicos como Caio Prado Júnior e Antonio Candido e enfrentar aquele cipoal que é a obra de Euclides da Cunha.

    Confesso que uns me ajudaram mais do que outros (é o caso do Sergio Buarque), mas faltava alguma coisa para que pudésse chegar ao xis da questão. Sem dúvida, a obra de Sergio Buarque tem o seu valor, mas está longe de ser uma unanimidade como tantos apregoam. Eu diria que ele foi um dos últimos escritores brasileiros a promover os valores mais elevados da cultura, justamente aqueles que expressam a autoconsciência do homem. Mas, infelizmente, seu filho não foi capaz de absorver esses valores.

    Vejam, no plano do pensamento o Brasil sofreu uma verdadeira inflexão. Em vez de Gilberto Freyre, Miguel Reale, Mario Ferreira dos Santos, SERGIO BUARQUE DE HOLLANDA, Vianna Moog, Otto Maria Carpeaux ou Guerreiro Ramos, temos Emir Sader, Adauto Novaes, Marilena Chauí, Chico de Oliveira, CHICO BUARQUE DE HOLLANDA e Frei Beto.

    Ninguém pode negar que como sociólogo e antropólogo, falta ao Chico a sensibilidade do pai. Do mesmo modo, ninguém pode negar que como romancista, falta ao Chico o talento de um José Lins do Rego. De fato, ele é esquemático e determinista como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro (vide os personagens do 'alemão sem pelos', em Budapeste; e do Eulálio d'Assumpção, em Leite Derramado). Seu pai pode ter sido um dos bambas da cultura nacional, mas Chico... Chico ainda tem um longo caminho a percorrer.

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